Democracia: como e para onde vamos?

“Nos tratam como delinquentes, mas estamos salvando a democracia”. Estas foram as palavras que uma mulher brasileira disse a uma repórter após ter sido presa por invadir a sede do Congresso do país. Com essa frase, talvez inconscientemente, aquela mulher resumiu uma narrativa da pós-verdade política que impera em nossa região, mas também, paradoxalmente, uma verdade sobre a democracia: a sua constante disputa.

As diferentes crises que se seguiram após a Segunda Guerra Mundial abriram brechas que a democracia, como forma de governo, foi incapaz de resolver. Não é por acaso que esta brasileira se justifica argumentando que as suas ações defendiam a democracia porque, assim como para muitos cidadãos da região, defender uma forma de democracia que solucione essas brechas é mais importante do que nunca.

Consequentemente, a disputa atual é enquadrada em um estado de declínio nas democracias em escala mundial. Ano após ano, desde 2008, estamos retrocedendo nos indicadores básicos de boa saúde democrática. Não é por acaso que a Pesquisa Mundial de Valores do ano passado, realizada em 77 países, mostrou que a porcentagem de entrevistados que apoiariam um líder que não tivesse de enfrentar o seu Congresso ou outras forças políticas foi de 52%, contra 38% em 2009. Portanto, não deve ser surpresa que, dos entrevistados, menos da metade (47,4%) respondeu que a democracia é importante para a sua sociedade.

Por sua vez, no seu relatório mais recente sobre o estado global da democracia, a organização IDEA Internacional reforça uma tendência que tem vindo a medir nos últimos cinco anos, a saber: que o número de países que caminham para o autoritarismo é mais do dobro daqueles que se estão consolidando como democracias. A cidadania está votando por soluções, não por debates, nem direitos ou liberdades.

Neste contexto global, a América Latina também mostra uma tendência para o declínio (apesar de ser uma das regiões com mais sistemas democráticos). Para ilustrar esta situação, a IDEA Internacional destaca, entre outras coisas, os retrocessos institucionais na Bolívia, Brasil, El Salvador e Guatemala; notícias falsas e desinformação como catalisadores da polarização; o aumento dos protestos em massa sobre a ineficácia dos programas sociais; e a consolidação do Haiti, Nicarágua e Venezuela, que se juntaram a Cuba como autocracias.

Infelizmente, estas descobertas não são surpreendentes, mas ao mesmo tempo convidam-nos a questionarmo-nos sobre as ações e as responsabilidades para o seu aprofundamento ou solução. Temos a vantagem de estar conscientes da crise e, consequentemente, de refletir sobre temas e problemas que são incômodos mas urgentes.

Os governos latino-americanos estão preocupados com o bem-estar das pessoas ou com a sua continuidade no poder? A “nova onda progressista” será julgada ou pela força que teve em romper pactos hegemônicos, ou por ter maquiado de rosa, verde ou roxo as suas políticas sociais. Devemos estar alertas para saber se os distúrbios no Brasil e no Peru são sintomas da mesma enfermidade regional ou se são acontecimentos conjunturais de cada país. Mas, acima de tudo, devemos preocupar-nos com o fato de a polarização ter nos transformado em inimigos absolutos.

Como vai a democracia? Em declínio. O paradoxo que resulta deste contexto de crise é preocupante (mas fascinante como objeto de estudo) porque, assim como advertiu aquela cidadã brasileira, defender a democracia hoje parece implicar a fragilização de seus fundamentos, a fim de ganhar o monopólio de sua função e definição. Nossa atual disputa pela democracia tem uma dimensão heroica na qual “salvar a democracia” implica uma violência simbólica e material que podemos não saber como evitar.

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