O “lawfare”, como é conhecida a utilização de instrumentos jurídicos para articular uma perseguição política, se estende por toda a América Latina. Nos últimos cinco anos, a “guerra jurídica” se intensificou, quantitativa e qualitativamente, tornando-se uma estratégia regional coordenada que utiliza a legitimidade do aparato jurídico do Estado para subverter, forçar ou manipular os processos democráticos de alternância no poder. O Equador é um exemplo ilustrativo deste processo.
A acusação ou prisão de líderes políticos como Lula da Silva no Brasil tem sido a ponta do iceberg do “lawfare”, mas a estratégia vai muito mais longe. Entre outras medidas, inclui a ação dos meios de comunicação para aniquilar a imagem dos líderes políticos; a utilização do aparato administrativo sancionatório para perseguir a militância da oposição; a imparcialidade judicial; ou a interferência nos processos eleitorais.
Equador, eleições e lawfare eleitoral
No Equador, estas estratégias têm ultrapassado a dinâmica tradicional de utilizar o sistema penal para anular o adversário político, sob o amplo guarda-chuva da “luta contra a corrupção”, para dar um salto ao âmbito processual-eleitoral. O “lawfare” começou em 2017, desenvolvendo-se tanto no âmbito judicial penal – a Procuradoria-Geral do Estado e os tribunais – como na esfera administrativa com a Controladoria-Geral do Estado.
Por um lado, foram abertos processos criminais e decretadas penas de prisão preventiva contra dirigentes do “correísmo”, incluindo o ex-presidente Rafael Correa. E, por outro, numerosos ex-funcionários desse governo foram perseguidos com sanções econômicas e ameaças de acusação.
Em outubro de 2019, após a revolta popular e a repressão policial e militar, esta utilização da via penal deu um importante giro qualitativo. Da acusação de corrupção, passaram a perseguir uma suposta rebelião que afetou importantes líderes políticos e sociais. Esta estratégia foi criticada por diversos organismos e a própria Comissão Interamericana dos Direitos Humanos (CIDH) outorgou medidas cautelares para pôr fim à privação de liberdade dos líderes políticos acusados de rebelião.
As eleições gerais
Antes das eleições gerais, cujo primeiro turno foi realizado em 7 de fevereiro, a maquinaria do lawfare foi reativada. Assim começou o que podemos chamar de “lawfare eleitoral”, que tem englobado três estratégias fundamentais: dificultar a inscrição de políticos, deslegitimar os candidatos e atacar a institucionalidade eleitoral.
A primeira centrou-se em impedir tanto a inscrição da Revolución Ciudadana (RC) – partido de Correa – no registo de organizações políticas como a inscrição dos seus candidatos. Estes candidatos foram então obrigados a concorrer nas eleições locais de 2019 como membros do movimento Fuerza Compromiso Social (FSC).
Após as eleições, contudo, a Controladoria Geral do Estado conseguiu, sob ameaça de demissão e mediante multas aos integrantes do Conselho Nacional Eleitoral, anular também o registo do FSC, o que forçou, quatro meses antes das eleições, a inscrição de uma nova aliança, desta vez com o Movimento do Centro Democrático, denominada Union for Hope (UNES). Finalmente, em setembro de 2020, o Conselho Nacional Eleitoral aceitou a inscrição da coligação que apresentou como candidatura o binômio Andrés Arauz-Rafael Correa.
Em paralelo aos obstáculos à inscrição do partido, em julho de 2020, o Regulamento de Democracia Interna foi reformado, incluindo requisitos que dificultavam a inscrição de candidatos a presidente e vice-presidente. Isto, somado à desqualificação judicial acelerada do ex-presidente Correa, forçou uma mudança da fórmula eleitoral in extremis. O binômio original foi finalmente substituído pelo binômio Andrés Arauz-Carlos Rabascall, que também foi impugnado, embora pudesse finalmente ser registrado e confirmado em dezembro, apenas dois meses antes das eleições.
As dificuldades para participar no processo eleitoral no Equador, no entanto, não se limitaram apenas ao correísmo. Em meados de novembro do ano passado, a presidente do Conselho Nacional Eleitoral (CNE) confirmou que Álvaro Noboa, líder do Partido Renovador Institucional Acción Nacional, não poderia candidatar-se à presidência devido às inadimplências do movimento que pretendia patrociná-lo.
A OEA e a condenação da interferência no processo eleitoral
Estas ações têm sido observadas por atores nacionais e internacionais. O informe da Missão de Observação Eleitoral da Organização dos Estados Americanos (OEA) registou os obstáculos encontrados no processo de registo de candidaturas e o consequente impacto na igualdade de oportunidades na disputa eleitoral.
Apesar do “lawfare eleitoral”, a dupla Arauz-Rabascall ganhou com 32,7% dos votos, derrotando o candidato no segundo lugar, Guillermo Lasso, por mais de dez pontos. Este resultado, que requer um segundo turno, gerou um rearmamento do lawfare, com uma estratégia agora centrada no segundo e terceiro objetivos mencionados: atacar a figura de Andrés Arauz e deslegitimar o Conselho Nacional Eleitoral (CNE).
Estas estratégias também não são novidades, mas a mudança qualitativa ocorreu com o aparecimento em cena de Francisco Barbosa, Procurador-Geral da Colômbia, evidenciando a articulação regional da guerra jurídica. Barbosa chegou a Quito a pedido do sua homóloga equatoriana no meio da contagem eleitoral e antes da apresentação dos resultados finais. O motivo da viagem era supostamente fornecer provas de uma alegada relação entre o financiamento da campanha de Andrés Arauz e o movimento guerrilheiro colombiano Exército de Libertação Nacional (ELN). Estas provas não foram reveladas, nem na Colômbia nem no Equador.
Por outro lado, a Controladoria-Geral do Estado, solicitou o início de uma auditoria informática do sistema, prolongando assim a ofensiva contra o Conselho Nacional Eleitoral (CNE). Entretanto, a Procuradoria-Geral informou o Conselho da sua vontade de recolher o conteúdo digital da base de dados que administra o sistema informático eleitoral. Ambas as interferências foram criticadas no relatório da Missão da OEA, que menciona que os ataques contínuos à CNE, como árbitro do concurso eleitoral, devem ser evitados a fim de não afetar a legitimidade do processo em si.
Além disso, as acusações infundadas de fraude na recontagem do primeiro turno e a ação propagandística de certos meios de comunicação social estão contribuindo para criar uma narrativa de fraude e para manchar as eleições antes do segundo turno, acelerando o processo de decomposição da institucionalidade do Estado e do governo de Lenín Moreno.
Se a tudo isto acrescentarmos a demissão dos Ministros da Saúde e do Governo, os recentes massacres descontrolados nas prisões, o aumento da pobreza e a precariedade ou os escândalos de vacinações indevidas, o que obtemos é um cenário extremamente volátil, o que representa um risco de ruptura democrática e institucional. Neste cenário, as eleições de 11 de abril são uma oportunidade para restaurar, não só a justiça social, mas também a própria institucionalidade democrática no Equador.