O que aprender com os EUA sobre violência de gênero?

Em 11 de Abril, na Argentina, Micaela, uma jovem de 21 anos foi violentada e assassinada por um homem que, um ano antes, maltratou pelo menos duas outras mulheres, mas foi libertado por um juiz antes de cumprir a sua pena de 9 anos. Dias depois, na Bolívia, outro homem bateu na sua parceira até lhe provocar um aborto. Ele também está livre porque o médico deu à vítima menos dias de impedimento do que o exigido por lei para deter o agressor. No dia 15 de abril, uma mulher de 32 anos foi encontrada morta no município de Chietla, no México, assassinada pelo marido por lhe pedir dinheiro para comprar comida.

Esses casos, que causaram comoção local, mostram padrões de comportamento semelhantes e revelam lacunas institucionais e jurídicas na luta contra a violência de gênero. Este comportamento se repete diariamente em grande parte da América Latina, devido à insuficiente resposta dos governos, apesar do aumento da demanda social.

Embora os países tenham muitas vezes leis de última geração, em muitos casos estas são inaplicáveis devido a diferentes fatores: instituições fracas diante da falta de recursos estatais; relatórios sobre feminicídios cada vez mais exaustivos e, ao mesmo tempo, altos sub-registros; mídia mais atenta mas também tingida de vermelho; mulheres duplamente vitimizadas e uma desconfiança cada vez mais evidente em relação à justiça. Por esta razão, vale a pena ver outras realidades em que, embora o problema seja igualmente complexo, é encarado de uma forma diferente. Este é o caso dos Estados Unidos.

Imagine a cena: uma chamada para o 911 denunciando que uma mulher foi agredida pelo parceiro. Em menos de 20 minutos a polícia chega, verifica o crime, prende o suposto agressor, leva-o a um juiz especializado e, se não for encontrado, é-lhe dada uma ordem que o mantém afastado da vítima durante 48 horas, mesmo que a vítima não se apresente. Se for uma agressão sexual, um enfermeiro chega com a polícia para avaliar os ferimentos e preservar as provas para julgamento, onde também servirá como testemunha.

Este é o protocolo de atendimento nos Estados Unidos para uma queixa de violência de gênero ou um homicídio intrafamiliar como é chamado. Ali, não só não existe o feminicídio como figura jurídica, como o país nem sequer ratificou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), a Carta Internacional dos Direitos da Mulher.

Apesar disso, tanto a resposta institucional quanto a resposta cidadã à violência são impostas ao popular: “temos leis, o que é preciso é cumpri-las”. A primeira diferença é que, nos Estados Unidos, as respostas à violência de gênero vêm de iniciativas individuais e coletivas, o que explica por que muitas políticas são confiadas a mãos privadas, dando origem a instituições com administração própria, mas com apoio e controle federal e estatal. A contribuição federal para esses entes é a segunda grande diferença, pois não só garante sua continuidade, como também possibilita que eles se tornem políticas públicas. Um exemplo é a formação de juízes especializados, e um caso paradigmático é o do juiz Timothy Black, famoso por legalizar o casamento gay no estado de Ohio e atual líder judicial em matéria de violência doméstica. Esta dupla é complementada por um departamento de polícia que, além de ser eficaz na resolução de casos, é responsável pela segurança integral da vítima.

Uma experiência extraordinária é o San Diego Community Justice Center, que se assemelha a uma casa e tem um tradutor, psicólogo e assessor jurídico, entre outros serviços. Este lugar, que na América Latina poderia ser um serviço ideal para as vítimas, nos Estados Unidos depende da polícia e é financiado com recursos públicos. Além disso, é a polícia que emite a ordem de restrição que, em alguns casos, é monitorada com uma alça eletrônica para evitar se aproximar da vítima por 48 horas e em um raio não inferior a dois quilômetros. Isso faria a diferença em muitos países onde certos femicídios são realizados dentro de horas após a primeira agressão. Em geral, não há uma resposta imediata e abrangente como esta em nossa região, exceto na Costa Rica, que tem uma Corte de Família, um sistema de proteção imediata independente de processos penais, esclarece o juiz presidente desta Corte, Alexis Vargas.

desde o momento da agressão, mais de uma organização privada ou instituição pública à sua disposição para proteção e abrigo temporário, até o treinamento profissional.

Outro ponto forte do sistema americano é o trabalho em rede, que, sob o mesmo esquema de financiamento, garante que a vítima tenha à sua disposição, desde o momento da agressão, mais de uma organização privada ou instituição pública à sua disposição para proteção e abrigo temporário, até o treinamento profissional. Tudo isso é coberto pela Lei da Violência, que é atualizada a cada dois anos.

Na Bolívia, El Padem, um programa do Solidar Suíça, conseguiu criar a maior rede de iniciativas de cidadãos e comunicadores locais do país em mais de 100 municípios. No entanto, uma vez que o projeto não recebe apoio estatal, depende da cooperação internacional, o que põe em risco a sua continuidade. Algo semelhante acontece com os 60 abrigos para vítimas de violência no México, que embora disponham de um orçamento nacional não contam com todas as garantias e não cobrem todas as necessidades. É o que adverte Mayela Chávez, diretora do Centro de Apoio a Opções Dignas da cidade de Acuña, Coahuila. “O México é um país de leis e assinaturas, assinamos e ratificamos todos os tratados que apoiam a igualdade, a não discriminação e a eliminação da violência contra as mulheres, mas na realidade os recursos que são alocados na teoria não são garantidos na prática”.

Por enquanto, a participação cidadã na luta contra a violência de gênero na América Latina tem se concentrado no protesto social, ainda que isso nem sempre se traduza em mudanças qualitativas no âmbito legislativo ou em um aumento dos orçamentos. No momento, a pressão está focada na atuação do Estado como ente garantidor da segurança das mulheres, e pode haver uma maior surpresa no próximo ano quando a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre a denúncia da cidadã venezuelana Linda Loaiza, uma mulher que -15 anos depois de ser sequestrada, torturada e estuprada – conseguiu levar seu caso a esta instância, e processar o Estado por não cumprir com o devido processo. Esse dia marcará um antes e um depois na nossa relação com os Estados, no que diz respeito à violência baseada no género.

Foto de Marcos S. González Valdés em Trend Hype / CC BY-NC-ND

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