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Nenhum ser humano é ilegal

Desde a perspectiva dos direitos humanos, o que testemunhamos nos Estados Unidos, de modo geral, é um profundo retrocesso na política de acolhimento de pessoas migrantes, que coloca em evidência o atual colapso da hospitalidade cosmopolita liberal kantiana.

Eleito para presidir os Estados Unidos entre os anos de 2025 e 2029, o início do segundo mandato presidencial do Republicano Donald Trump é marcado por uma série de polêmicas. As medidas que Trump vem adotando logo após sua posse apesar de não serem grandes surpresas, posto que já integravam sua campanha, têm reverberado em discussões no âmbito da Política Internacional. Uma dessas medidas, amplamente veiculada pela mídia nacional e internacional, é a chamada “deportação em massa” de imigrantes não documentados e/ou que estão em situação migratória irregular nos Estados Unidos. Muitos desses, por sua vez, estão sendo enviados aos seus países de origem algemados e acorrentados pelos pés sob o argumento de que podem potencialmente resistir à detenção e/ou ocasionar distúrbios, colocando em risco a integridade física dos agentes de deportação e a segurança dos voos.

Embora a deportação seja uma medida controversa, cabe destacar que o Estado, em sua concepção moderna, é soberano para decidir qual política migratória irá adotar em seu território nacional. Essa política, no entanto, precisa estar em consonância com os compromissos internacionais assumidos por ele. Neste sentido, a filósofa e ensaísta italiana Donatella Di Cesare (2020) identifica que as democracias liberais contemporâneas são marcadas por um dilema filosófico, o qual é composto por uma tensão política entre o princípio de soberania estatal e os direitos humanos. Nos termos da autora, o direito à exclusão, ou seja, de definir quem é o nacional, o cidadão de direitos, e quem é o estrangeiro, é a marca do princípio de soberania estatal e um dos elementos fundadores do Estado moderno e, logo, do sistema internacional em que estamos inseridos. Com isso, a fronteira estatal, que o sujeito migrante atravessa, não é simplesmente uma linha imaginária que demarca o limite de um Estado e o início de outro, mas sim um espaço complexo de disputas, encontros, possibilidades e limites. Nela, incide, portanto, o paradoxo democrático que opera segundo a lógica de proteger a nação, o pertencente, ao passo em que discrimina e exclui o “Outro”, o estrangeiro, o não pertencente à nação. 

Desde meados do século XX, vemos um aumento nos fluxos migratórios internacionais, intensificados ainda pelos efeitos da globalização a partir da década de 1990. Os conflitos armados internos e internacionais, os desastres ambientais provocados ou não pela ação humana, a pobreza, as desigualdades socais históricas, a falta de oportunidades, a busca por melhores condições de vida, entre outros, são alguns dos principais motivos que fazem uma pessoa decidir migrar, sozinha ou acompanhada de amigos e familiares, para um país diferente daquele de sua nacionalidade. Com o objetivo de propiciar um movimento migratório seguro e ordenado, em que os direitos humanos do sujeito migrante possam ser assegurados, a Organização das Nações Unidas (ONU) desenvolveu instrumentos normativos, como declarações e tratados internacionais, que devem ser respeitados por seus Estados membros e que versam sobre essa problemática. Contudo, mesmo que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, elaborada em 1948, estabeleça, em seu décimo terceiro artigo, por exemplo, que toda pessoa humana tem o direito de migrar, na prática, as migrações são vistas como um problema para o sistema internacional e uma ameaça em potencial ao Estado-nação. Por esta razão, muitos Estados têm adotado políticas migratórias cada vez mais restritivas a fim de conter, ou ao menos dificultar, essas movimentações de pessoas.

De modo geral, as políticas migratórias internacionais restritivas estão associadas a uma narrativa, e racionalidade, de “crise”, presente em determinados discursos políticos e difundida e reforçada por veículos midiáticos, que identificam os movimentos migratórios como impositores de problemas e culpabilizam as pessoas migrantes pelos problemas econômicos e sociais enfrentados pelos países e sociedades receptores dessas populações. Assim, além de alimentar práticas discursivas xenofóbicas, e racistas, segundo a especialista Carolina Moulin, o argumento de “crise migratória” converte uma problemática de direitos para uma questão securitária, ocasionando o que a autora denomina ser uma “política de contenção dos excessos”, de uma força de trabalho, requerida, mas nunca bem-vinda.

Neste contexto, a política de deportação em um número sem precedentes de Trump, bem como o uso indiscriminado de algemas e correntes e outras formas de tratamento degradantes, estariam supostamente justificados, posto que aos imigrantes passam a estar associados todos crimes e problemas relacionados ao bem-estar social da população estadunidense.

Como resultado, o sujeito migrante é alvo de um processo de criminalização e a essa pessoa, quando em situação migratória não regulamentada, é atribuído o rótulo “ilegal”. Como se um ser humano pudesse ser considerado ilegal pelo simples fato de existir, buscar e construir uma outra realidade para si próprio e sua família. Portanto, para o especialista Di Cesare, “[…] vista como uma delinquência em si, a imigração seria fonte de crime. […] o imigrante vira assim o criminoso em potencial, o bandido sorrateiro, o terrorista implícito, o inimigo oculto”.

O efeito dessa narrativa, por sua vez, não se limita ao migrante irregular, que não possui a documentação necessária, mas atinge também o migrante documentado, ou seja, em situação migratória regular, que cotidianamente é estigmatizado. Em vista disso, desde a perspectiva dos direitos humanos, o que testemunhamos nos Estados Unidos, de modo geral, é um profundo retrocesso na política de acolhimento de pessoas migrantes, que coloca em evidência o atual colapso da hospitalidade cosmopolita liberal kantiana.

Autor

Doutora em Relações Internacionais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e especialista em migrações. Pesquisadora colaboradora da Universidade Federal do ABC (UFABC), pós-doutorada da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas MIGREF.

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