As oportunidades e os desafios gerados pela inteligência artificial (IA) e seu impacto nas mais variadas áreas da atividade humana são motivo de debate em todas as partes do mundo. Os países latino-americanos não estão à margem dessa onda. No Chile, foi apresentado um projeto de lei que busca regulamentar a IA e fomentar seu desenvolvimento ético e responsável; o Tribunal Constitucional da Colômbia emitiu uma decisão alertando que a IA não pode substituir um juiz; e o novo Plano brasileiro de IA prevê o investimento de US$ 4,1 bilhões até 2028 para desenvolver sua própria infraestrutura tecnológica.
Na Argentina, a IA também está adquirindo uma relevância cada vez maior na discussão política. Em maio, o presidente Javier Milei viajou para os Estados Unidos e se reuniu com alguns dos empresários de tecnologia mais poderosos do mundo. Ao retornar, o presidente disse que quer tornar a Argentina no quarto centro de IA do mundo, junto com China, Estados Unidos e Europa. As vantagens que a Argentina tem, segundo ele, são recursos humanos qualificados, energia disponível e as baixas temperaturas necessárias para resfriar grandes centros de dados.
Em paralelo, o Ministério da Segurança argentino anunciou a criação de uma Unidade de IA destinada à “prevenção, detecção, investigação e repressão de crimes”. A nova Unidade de IA teria entre suas funções vigiar redes sociais, sites da Internet e outros aplicativos, processar imagens de câmeras de segurança em tempo real mediante reconhecimento facial e analisar dados históricos de crimes através de algoritmos de aprendizagem automática.
Contra a maré?
Segundo a resolução do Ministério da Segurança, em muitos países que estão na vanguarda da integração dessas tecnologias, a IA é usada com esses fins. O que a resolução esquece ou omite é que essas mesmas funções também estão sendo proibidas por alguns dos mesmos países que menciona. A lei de IA que acaba de ser aprovada pela União Europeia, por exemplo, proíbe o uso de sistemas de identificação biométrica em tempo real em espaços públicos para fins de segurança, salvo em determinados contextos bem definidos.
Também na Argentina, a nível parlamentar, a Câmara Nacional de Deputados da Nação organizou uma Cúpula Regional de Parlamentares sobre IA em junho para “criar marcos regulatórios adequados e promover a inovação responsável, protegendo ao mesmo tempo os direitos e valores fundamentais”. A Cúpula serviu de prelúdio para os vários projetos de lei relacionados à regulamentação e promoção da IA que começaram a ser discutidos em agosto.
O fato da discussão sobre o desenvolvimento da IA e seu impacto na sociedade ter chegado ao nível parlamentar pode ser uma boa notícia, na medida em que a coloca sob a órbita da deliberação democrática. O preocupante é que o debate está sendo impulsionado com certa pressa e superficialidade por um pequeno grupo de líderes e funcionários públicos, sem incluir setores mais amplos da cidadania e sem fomentar as negociações e o consenso prévios que um tema desse calibre exige.
As limitações da visão libertária
Similar a outras áreas, o governo argentino postula que, para criar um entorno favorável ao desenvolvimento da IA no país, deve-se evitar qualquer tipo de intervenção estatal. No entanto, a ideia de que a regulamentação funciona contra a inovação, especialmente no campo das tecnologias digitais, é bastante simplista. Atualmente, a maioria dos especialistas concorda que a regulamentação, entendida de forma ampla, bem projetada e oportuna, serve de incentivo à inovação, entre outras razões, porque proporciona maior certeza sobre as regras do jogo.
Se presumirmos que algum tipo de regulamentação é necessária, então a questão não será se deve-se regulamentar ou não, mas como regulamentar uma tecnologia que é muito mais complexa (e também muito menos abstrata) do que geralmente é retratada. Após uma fase inicial em que os governos preferiram deixar a regulamentação nas mãos das empresas de tecnologia, hoje a maioria dos países entende que a autorregulamentação não funciona se não for acompanhada por algum tipo de intervenção estatal.
Décadas de um entorno digital desregulamentado permitiram que poucas empresas acumulassem um poder sem precedentes na história. Vivemos em um mundo em que a capitalização de mercado combinada dos principais gigantes da tecnologia é maior do que o PIB de alguns dos países mais ricos do mundo e de continentes inteiros. Trata-se de um poder econômico que se sustenta na crescente extração, acumulação e processamento de grandes quantidades de dados. Mas também de um poder político que surge da crescente importância do mundo virtual como uma arena na qual as questões públicas são decididas; e é esse poder que permite que Elon Musk, por exemplo, se comporte a nível internacional como verdadeiro chefe de Estado.
O avanço da IA em todas as áreas de nossas vidas não é, como muitos afirmam, algo inevitabilidade a ser “acomodada”. A maneira como essa tecnologia é desenvolvida e implantada dependerá da direção em que ela for conduzida. Essa direção pode ser escolhida por diretorias de algumas empresas que dominam o mercado global ou pelos cidadãos, seus representantes políticos e instituições democráticas, incluindo e canalizando as vozes da sociedade civil, as preocupações da mídia, dos jornalistas e dos pesquisadores acadêmicos e os interesses do setor privado envolvidos, entre outros atores importantes.
Criar um entorno favorável para a IA pode significar oferecer vantagens comparativas para que as grandes empresas de tecnologia encontrem um espaço ideal para expandir suas operações ou desenvolver as políticas públicas e as estruturas de governança necessárias para orientar esse desenvolvimento tecnológico para práticas que atendam ao bem comum. Pensar em IA no contexto de nossas democracias implica, em suma, dar lugar a um debate aberto, inclusivo e plural sobre a tecnologia e a maneira como a entendemos e queremos que impacte nossa sociedade.
Autor
Investigadora na Cátedra de Inteligência Artificial e Democracia do Instituto Universitário Europeu. Mestre em Governança Transnacional pela Escola de Governança Transnacional de Florença, Itália.