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Luis Arce: retroceder para governar

Em 2008, o famoso politólogo estadunidense Joel S. Migdal soltou uma declaração com tinges de profecia: “à medida que transcorre o século XXI, o Estado seguirá no centro da cena, mas as dificuldades do Estado para alcançar a conformidade e a obediência serão cada vez maiores”.

O paradoxo era que esse Estado tão requerido buscava dominar uma sociedade com fortes tendências de ignorar sua autoridade e, em alguns casos, a legitimidade de seus governos. No final de 2019, houve “explosões sociais” no Chile, Equador e Bolívia que derivaram em crises políticas. No Chile, o governo presidido por Sebastián Piñera não teve outra opção a não ser cancelar o aumento do preço da passagem do Metrô de Santiago, bem como, no caso do Equador, o presidente Lenin Moreno, teve que abandonar sua pretensão de eliminar o subsídio à gasolina. Enquanto isso, na Bolívia, os protestos urbanos maciços causados pela insistência do presidente Morales em permanecer no poder terminaram com sua renúncia e posterior saída para o México.

No entanto, algo distingue o caso boliviano: o MAS, apesar da crise de 2019 e da renúncia de Morales, pode recompor suas estruturas partidárias, organizar suas bases e conseguir uma vitória retumbante nas eleições presidenciais de 2020 com maioria absoluta. Isso é algo que não aconteceu no Chile ou no Equador, onde nem Piñera nem Moreno poderiam reproduzir sua permanência no poder.

O retrocesso como lógica do governo

Com esses antecedentes, pode-se falar de debilidade governamental em um governo como o de Luis Arce que obteve 55% dos votos mais 76 cadeiras no parlamento de 130 possíveis? Mas ainda, quando os partidos de oposição são (quase) uma caricatura de partido político? Certamente não, o contundente triunfo eleitoral dotou o governo do MAS de uma legitimidade indiscutível de origem que, em teoria, deveria levá-lo a implantar suas políticas sem maiores turbulências.

No entanto, este não é o caso. Até agora, nesse período, o governo teve que retroceder em várias políticas, mais notadamente a revogação da Lei 1386 contra as ganancias ilícitas e financiamento do terrorismo, uma Lei que já havia passado por todos os filtros do Poder Legislativo. O surpreendente é que a oposição a essa norma veio de setores aliados ao governo, como os transportadores, sindicatos e cooperativas de mineração que, além dos discursos anti-MAS de seus companheiros conjunturais de luta, como os cidadãos de Santa Cruz e Potosí, certamente se assustaram diante de uma Lei que pudesse investigar as fontes de suas fortunas.

O segundo grande retrocesso foi a postergação do requisito de portar a carteira de vacinação contra a Covid-19 para realizar trâmites em entidades públicas e privadas.  Em 1º de janeiro de 2022, Luis Arce lançou esta política para pará-la em seus rastros seis dias depois. O governo justificou o congelamento aludindo às longas filas nos postos de vacinação, mas essa não é a verdade ou não toda a verdade. O que acontece é que (mais uma vez) movimentos sociais aliados ao MAS anunciaram medidas pedindo a anulação do decreto como a Federação Departamental de Professores de Educação Rural de La Paz, os produtores de coca de Yungas, as juventudes do MAS, a Federação dos Camponeses Tupac Katari, a Federação das Mulheres Camponesas bartolinas, a Intercultural, a Confederação de Marcos e Ayllus,  o Comitê Cívico de El Alto e o Conselho das Federações Camponesas de Los Yungas, junto com várias outras organizações menores, mas não menos combativas, como os Ponchos Vermelhos. Todos eles estão no poder hoje, mas, do lado de fora, bloqueiam a política de Arce.  

Em um artigo anterior postulei que isso poderia ser devido ao estilo de governo de Arce que, ao contrário do de seu antecessor, prefere retroceder a confrontar. No entanto, embora a liderança seja importante, ainda mais em um regime presidencialista como o boliviano, a repetição desses retrocessos de Arce convidam a propor algumas explicações que apontam para aspectos mais estruturais, próprios da configuração do Estado plurinacional boliviano.

O problema está no fato de que o governo do MAS chegou ao poder impulsionado por uma série de organizações populares (sindicatos camponeses, movimentos indígenas, grupos urbanos) que nunca foram totalmente institucionalizadas pelo Estado, ou seja, não foram absorvidas pelo MAS. Para os atores sindicais, foi mais benéfico manter a independência de suas organizações sem deixar de estar presentes no aparato estatal, o que os leva a atuar, quando se trata de preservar seus interesses, tanto de dentro como de fora do governo. O exemplo mais claro é a Federação dos mineiros cooperativista cujos dirigentes chegaram à liderança do ministério da mineração, mas que quando viram que as políticas governamentais não coincidiram com seus interesses empresariais, não hesitaram em sair às ruas para enfrentar seu governo. 

Portanto, embora Luis Arce possa estabelecer sua agenda com certa autonomia, a longo prazo, aqueles que moldam as políticas, que definem se a lei ou a política pública entram em vigência ou não, são os movimentos sociais ou uma parte deles. O já mencionado Migdal apontou que o Estado se engajou em verdadeiras “batalhas de campo” com outros atores com poder que se opuseram ou que resistiram às suas determinações, mas Migdal afirmou que eles estavam, de uma forma ou de outra, fora do governo, não dentro. A particularidade do governo do MAS é que seus parceiros, quando lhes convém, atuam como aliados e quando não, como sindicatos independentes.

Embora isso não seja nenhuma novidade (de fato, foi a característica constitutiva do governo do MAS), o amplo domínio e a liderança de Morales sobre os movimentos sociais atenuaram um pouco esse problema. Por outro lado, agora, o presidente Arce carece em absoluto de alguma chegada a esses atores, o que leva a configurar um governo com uma autonomia muito relativa para estabelecer sua própria agenda de prioridades e uma fraqueza marcante para realizar suas políticas públicas.

O dano à democracia

Dito isso, é possível que essa rotina de avançar para logo retroceder, essa lógica de agradar aos aliados para realizar políticas seja a tônica no governo Arce. Michael Mann (o sociólogo, não o cineasta) estabeleceu que os Estados evoluíram à medida que alcançavam um poder infraestrutural no qual o Estado penetrava e dominava a sociedade. Na Bolívia há um processo inverso: é a sociedade que penetra no Estado, são suas organizações que terminam moldando as políticas do MAS.

Esse fenômeno é altamente negativo para a sociedade. Um Estado que não pode se impor sobre os interesses particulares dos atores com poder é um Estado que não constrói cidadania e, no final, nem a democracia.

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Cientista político. Professor e pesquisador da Universidade San Francisco Xavier (Sucre, Bolívia). Doutor em Ciências Sociais com especialização em Estudos Políticos por FLACSO-Equador.

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