As migrações provocadas por inundações, incêndios florestais e secas em países como Brasil, Argentina e Chile ou a necessidade de realocar populações costeiras devido ao aumento do nível do mar, como está ocorrendo na Costa Atlântica e Pacífica do Panamá, são alguns dos exemplos de mobilidade humana no contexto das mudanças climáticas na América Latina.
Na região, assim como no resto do mundo, as mudanças climáticas estão se agravando e provocando danos significativos em todas as esferas, conforme alertou o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). O aumento nos níveis de fome e de insegurança alimentar, o aumento de diversas doenças e a perda global de biodiversidade estão forçando milhões de pessoas a abandonar suas casas ano após ano.
A mudança climática tem efeitos desiguais e afeta mais intensamente os países do Sul global, que estão mais expostos e vulneráveis aos seus impactos. Além disso, a capacidade desses países de enfrentar e se recuperar de seus efeitos adversos é limitada, devido a fatores como pobreza e desigualdade, maior presença de conflitos, escassez de recursos econômicos e humanos e fragilidade institucional.
A América Latina é responsável por apenas 8% das emissões globais de gases de efeito estufa, mas é uma região altamente vulnerável às mudanças climáticas. Na região, esse fenômeno impacta as migrações e, particularmente, os deslocamentos internos. De acordo com o Centro de Monitoramento de Deslocamento Interno (IDMC, por suas siglas em inglês), somente em 2022, foram registrados 2,1 milhões de deslocamentos internos decorrentes de desastres nas Américas.
De acordo com o Escritório das Nações Unidas para a Redução do Risco de Desastres, a América Latina e o Caribe são a segunda região mais propensa a desastres no mundo, depois da Ásia e do Pacífico. No período de 2000 a 2022, mais de 190 milhões de pessoas foram afetadas por desastres como enchentes, tempestades, terremotos, deslizamentos de terra e secas. Esse é um fenômeno histórico, cujos efeitos são agravados por fatores de risco como pobreza, desigualdades, fome, insegurança alimentar, crises econômicas e instabilidade política. Mas esses fatores foram recentemente agravados pela crescente degradação ambiental e pelas mudanças climáticas, bem como pelo alto número de pessoas que vivem em assentamentos informais nas metrópoles do mundo em desenvolvimento.
De acordo com as projeções do Banco Mundial, até 2050, as mudanças climáticas poderão levar a 216 milhões de migrantes internos por motivos climáticos em seis regiões: África Subsaariana; Leste Asiático e Pacífico; Sul da Ásia; Norte da África; América Latina; e Leste Europeu e Ásia Central. Os cenários climáticos mais pessimistas estimam que 17 milhões de pessoas poderão ser deslocadas pelos efeitos das mudanças climáticas na América Latina até 2050.
As cifras atuais sobre as migrações climáticas e as projeções para as próximas décadas levaram a chefe da Organização Internacional para as Migrações (OIM), Amy Pope, a declarar em setembro de 2023 que “entramos oficialmente na era da migração climática”. A OIM define esse fenômeno como o “movimento de uma pessoa ou grupos de pessoas que, predominantemente por motivos de mudança ambiental súbita ou progressiva devido à mudança climática, são forçados a deixar seu local de residência habitual ou optam por fazê-lo, temporária ou permanentemente, dentro de um estado ou através de uma fronteira internacional”. A migração climática é, portanto, uma subcategoria da migração ambiental, mas, para entender suas características e efeitos reais, é necessário superar as visões reducionistas e alarmistas.
Como mostram os estudos migratórios, a mobilidade humana é um processo complexo e multifacetado que as mudanças climáticas podem reforçar, acelerar ou agravar. Nesse sentido, o foco necessário nas mudanças climáticas como um fator indireto e, muitas vezes, diretamente associado à migração – tanto interna quanto internacional – não pode e não deve obscurecer as forças econômicas, políticas e sociais por trás da mobilidade humana.
Afinal, fatores como a pobreza, as desigualdades, a escassez de alimentos e de recursos, a urbanização e a falta de emprego continuam a ser os principais impulsionadores do deslocamento populacional e não é coincidência que sejam as populações do Sul global as principais deslocadas por esse fenômeno. Entretanto, em um mundo em que a mobilidade humana é uma estratégia desejada, mas não disponível para todos, a imobilidade forçada e a existência de populações presas em seus locais de origem constituem uma maioria silenciosa.
O necessário olhar científico sobre as migrações, o reconhecimento de que existem estratégias de adaptação às mudanças climáticas e de que seus efeitos podem, muitas vezes, ser evitados e mitigados com políticas adequadas, não devem nos impedir de discutir uma questão que merece plena atenção. A relação entre meio ambiente, mudanças climáticas e migração está presente na Agenda 2030, nos Pactos Globais sobre Migração e Refúgio e em instrumentos específicos, como a Iniciativa Nansen, o Marco de Ação de Sendai e os Princípios da Península sobre Deslocamento Climático Intraestatal, para citar apenas alguns. A nível global, há também um movimento importante para ampliar a definição de refúgio para reconhecer as causas ambientais e climáticas que motivam esse processo.
Na América Latina, Grupos como a RESAMA (Red Suramericana de Migraciones Ambientales) vêm trabalhando há mais de uma década para tornar essa realidade visível e possibilitaram a formulação de evidências científicas e recomendações de políticas públicas. Há também iniciativas como vistos humanitários para pessoas deslocadas por desastres no Brasil e na Argentina, enquanto na Colômbia um recente projeto de lei (N. 299/2022C) busca reconhecer de forma pioneira o deslocamento por causas climáticas. Há também um significativo esforço regional para uma nova leitura da Declaração de Cartagena sobre Refugiados de 1984, que inclua as causas ambientais desse fenômeno.
Entretanto, ao discutir as migrações climáticas, não podemos esquecer a responsabilidade dos Estados diante das mudanças climáticas e os efeitos desiguais que esse fenômeno provoca a nível mundial, com ênfase nos países do Sul. Em outras palavras, não é possível realizar negociações climáticas globais ou discutir seriamente seus impactos na mobilidade humana sem reconhecer os vínculos entre esse fenômeno e a falta de justiça social e ambiental. Em uma região como a América Latina, caracterizada por enormes desigualdades e níveis crescentes de injustiça multidimensional, esse deve ser o ponto de partida.
Autor
Cientista política. Professora de Relações Internacionais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e do Programa de Pós-graduação em Ciência Política da UNIRIO. Doutora em Ciência Política pela Universidade Complutense de Madri.