A tragédia climática que assola o estado do Rio Grande do Sul abriu palco para a peleia de apontar (ou não) os culpados pela tragédia. Contudo, interessa-me saber se há inocentes nessa história. Além disso, a dimensão da catástrofe tem sido alvo de questionamentos sobre se esse é o momento adequado para a politização. O fato é que não há consenso. Indivíduos dos diversos grupos e extratos sociais têm pressupostos incompatíveis em relação à política e sobre o que é político. Para alguns, a extensão da catástrofe é, em si, expressão de um resultado político. Para outros, a política é apenas espectro partidário e, nesse sentido, agora não há lados. Nem esquerda, nem direita.
Os pressupostos inconciliáveis são evidentes no uso das redes sociais para difundir a ideia de que “não se deve doar para o governo”. De um lado, os defensores do Estado mínimo e da iniciativa privada, seguros de prescindir do poder público, usam o termo governo como sinônimo de Estado. Desse modo, depreendem da ineficiência do governo a inutilidade do Estado: “É o povo pelo povo”, diz o fabordão. Do outro lado, estão os defensores do Estado forte, ativo e proativo também na agenda climática. Eles diferenciam governo de Estado e ao afirmarem que o atual governo é ineficiente e pouco transparente na gestão dos recursos também aludem: “é o povo pelo povo”. O bordão é o mesmo, as premissas são distintas.
A noção de que era “dever do governo proteger as pessoas e agora é o povo que o faz” é assumida tanto pelos defensores do Estado mínimo quanto pelos defensores do Estado robusto. Essa noção é usada pelos primeiros para justificar a desimportância dos governos em geral. Já os defensores do Estado forte alegam que os atuais governos — do estado do Rio Grande do Sul e da capital Porto Alegre — desmontaram as políticas de prevenção de desastres naturais, deixando-as nas mãos da iniciativa privada a sua regulação.
Fica evidente que a política está em todas as partes. Programas, projetos e ações concretas para a preservação do meio ambiente e para tornar o espaço habitado mais sustentável e resiliente às alterações climáticas também compõe a política. Fenômenos naturais extremos sempre existiram, é verdade, mas é inegável o aumento da sua frequência e intensidade devido à ação humana desenfreada e desordenada na natureza. Não importa se você considera que do epicentro do infortúnio não é o momento de apontar culpados. Não importa se você considera que agora é o momento de apontar culpados. Você já se perguntou se há inocentes nessa história?
Conforme apontam os relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, a catástrofe climática não pode ser considerada obra do acaso, mas o resultado de décadas de destruição dos recursos naturais. Concretamos às margens dos rios e assoreamos os seus leitos; encurtamos artificialmente caminhos e eliminamos as curvas do curso da água; alteramos a velocidade da vazante natural na corrida insaciável por lucro e produtividade que acompanha o ritmo impiedoso do nosso dia a dia.
As mudanças climáticas devido ao aquecimento global não são novidades. É sabido que o aquecimento global é provocado não só pelas grandes indústrias e pelo descaso dos governantes, mas impulsionado pelos nossos hábitos de consumo. Por exemplo, uma dieta equilibrada, baseada em frutas e legumes e reduzido consumo de proteína animal é benéfica não só para a saúde física como também para o meio ambiente, além da significativa redução de gases de efeito estufa, economizaríamos água.
Diante disso, desconsiderando qual seja a sua posição sobre se este é o momento ou não de apontar os culpados, você já pensou que tampouco existam inocentes? Ainda que você se recuse a falar de política no meio da tragédia, ela está subjacente aos discursos e posições. A política não precisa ser explícita na fala para estar presente. A política permeia cada decisão tomada no presente e no passado. Não nos esqueçamos das decisões passadas. É incontestável que apoiar gestores que flexibilizaram a legislação ambiental permitindo um retrocesso de 40 anos tem impactos devastadores generalizados. É o que estamos vivenciando. Mas para além dos gestores e da legislação, como nossos hábitos de consumo contribuem para um meio ambiente mais sustentável?
Sabemos reciclar as capsulas de café ou não nos importamos com o seu destino? Sabemos andar a pé ou não damos um passo sem o automóvel que polui o ar e aquece o planeta? Usamos por anos a mesma peça jeans ou a descartamos a cada estação? Economizamos água nas lavagens ou trocamos de roupas como se fossem peças descartáveis? Temos uma dieta vegetariana ou consumimos carne todos os dias? Hoje muito se fala da escassez de água no Rio Grande do Sul, mas ignoramos que para cada quilo de carne bovina produzido são necessários em média 15 mil litros de água. Ignoramos que a cada calça jeans produzida são mais de 5.190 litros de água desperdiçada, a mesma água potável escassa em momentos de catástrofe.
Se há inocentes nessa história, talvez apenas os cientistas. Categoricamente ecoa Chico César: “até hoje, na verdade, nunca houve um desenvolvimento tão destrutivista. É o que diz aquele que vocês não ouvem, o cientista, essa voz, a da ciência. Tampouco a voz da consciência os comove. Vocês só ouvem algo por conveniência”.
Ainda que não se admita, a política está no que comemos, no que vestimos e no modo como nos locomovemos. A política está na forma seletiva com a qual nos preocupamos com a água e com os demais recursos naturais. A política está no nosso insaciável consumismo. Na verdade, o que consumimos nos consome e ignoramos porque não é hora de apontar os culpados. Ninguém quer dedos apontados para si.
Autor
Coordenador Nacional de Transparência Eleitoral para México e América Central. Mestre em Governança, Marketing Político e Comunicação Estratégica pela Univ. Rei Juan Carlos (Espanha). Professor universitário.