Hoje a Bolívia vive um caos institucional porque não se sabe ao certo quem manda no país, Luis Arce ou Evo Morales. Eles partiram os poderes estatais com habilidade de açougueiro e ameaçam despedaçar o Estado de Direito. O presidente Arce, diante de sua fraqueza na Assembleia Legislativa Plurinacional, decidiu se entrincheirar no judiciário e, a partir daí, trava uma batalha feroz com quem era seu chefe e amigo. O opositor Morales, diante de sua fraqueza no judiciário, entrincheirou-se com os seus na Assembleia e ordenou bloquear qualquer lei que venha da Casa Grande del Pueblo, o lugar no qual seu ex-ministro estrela e agora amargo inimigo ocupa.
Mas a batalha não é só travada em espaços institucionais, também apela ao número, à quantidade. Hoje é multidão contra multidão. A rebelião das massas arcistas contra a rebelião das massas evistas. Em um dia, o lado governista organiza um evento multitudinário em El Alto para demonstrar sua força e, uma semana depois, Evo organiza outro, no qual mostra que os que o apóiam não são poucos. Demonstrações onerosas de força política, dirigidas a convencer um Órgão Eleitoral Plurinacional acostumado há mais de uma década a obedecer a um único chefe, e que não sabe como se contentar agora que tem dois.
Entretanto, nessa divergência, há algo que Arce e Morales compartilham. Ambos se negam a ver a realidade. Durante 14 anos, Morales viveu como filho adolescente de pai rico que gasta dinheiro como se fosse inesgotável. Por sua vez, Arce vive a fantasia de acreditar que, com poucos recursos, funcionários medíocres e discursos, pode-se industrializar o país. Infelizmente, os dados condenam Evo e contradizem Arce: em vez de exportar produtos com valor agregado, seguimos no costume colonial de exportar matérias-primas; em vez de uma burocracia eficiente, temos um Estado dominado por ativistas da luta de rua e, em vez de discursos, temos isso, apenas discursos.
Essa luta pode ser o início de um processo de reconfiguração política que fará com que duas facções do MAS apareçam como partidos políticos diferentes, além de um ou dois partidos de oposição que competirão, mas não serão competitivos. Essa reconfiguração se cristalizará nas eleições gerais de 2025, mas até lá o governo terá de lidar com muitos conflitos, entre eles o avivamento do fator regional. Deixe-me explicar.
A Bolívia é um país de regiões, como descreveu o destacado historiador beni José Luis Roca (formou-se advogado na USFX como o melhor de seus alunos). Nesse país, as pessoas não se identificam exclusivamente como bolivianas, mas sim como cruceña, chuquisaqueña, potosina, paceña, cochala etc. Ou seja, organizam seus projetos políticos com referência ao território onde nasceram. Essa identidade é a base do surgimento dos comitês cívicos, como um canal para as demandas locais, que podem permanecer em hibernação por muitos anos, mas nunca são completamente desativados.
O gatilho para esse renascimento serão os resultados do censo. Um instrumento criado para dar informações estatísticas para políticas públicas explodirá o tão temido regionalismo. Departamentos pobres, como Chuquisaca e Potosí, verão que só foram fonte de renda para o Estado com as exportações de gás e minerais, mas nunca destino de projetos de desenvolvimento. Por sua vez, Santa Cruz (um departamento próspero) perceberá, pela enésima vez, que é o caminhão que impulsiona o desenvolvimento do país, mas não o que o conduz. Para alguns, a queixa consistirá em serem esquecidos das políticas estatais; para outros, será ter poder econômico, mas não poder político.
Espera-se que esse futuro conflito centro-periferia leve a uma mudança na agenda política que debaterá as autonomias departamentais, tão necessárias para o desenvolvimento quanto úteis para deter o processo de erosão democrática.
Para isso, dependerá da lucidez da liderança regional.
Autor
Cientista político. Professor e pesquisador da Universidade San Francisco Xavier (Sucre, Bolívia). Doutor em Ciências Sociais com especialização em Estudos Políticos por FLACSO-Equador.