É cada vez mais evidente que a “crise ambiental” engloba a extinção de espécies e as mudanças climáticas, mas também inclui a perda e a diversidade cultural, a redução das experiências pessoais e sociais com a natureza e a distribuição desigual da contaminação e da degradação ambiental entre as pessoas. Pode-se até argumentar que foi criado um consenso internacional, refletido nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável ou no Marco Mundial da Biodiversidade de Kunming-Montreal, de que enfrentamos uma “crise de valores” que traz consigo o desafio de recuperar um sentido mais holístico da “vida” que queremos conservar.
A construção de um novo paradigma
A partir da década de 1980, tornou-se predominante na conservação o conceito de “biodiversidade”, termo cunhado por biólogos estadunidenses para expressar a “diversidade da vida”. Essa ideia foi uma inovação na época, ampliando o foco da conservação para além das espécies mais carismáticas, vistosas ou grandes, e incluindo a variabilidade genética, as interações tróficas e a heterogeneidade do ecossistema, mas mantendo uma abordagem baseada em grande parte no valor intrínseco (por exemplo, a importância da própria natureza) e nas medições biofísicas (por exemplo, número de espécies, hectares de habitat). Depois, na década de 1990, a economia ecológica surgiu junto com o conceito de “serviços ecossistêmicos”, destacando os valores monetários e utilitários (por exemplo, meios para um fim humano) da natureza.
Entretanto, tratar a conservação exclusivamente a partir de uma perspectiva ecológica ou econômica pode gerar situações de injustiça em relação aos povos indígenas e às comunidades locais. Dada a desigualdade no acesso e na distribuição das contribuições da natureza, essas populações frequentemente sofreram com as políticas ambientais como imposições coloniais. Além disso, foi demonstrado que a exclusão das pessoas das decisões prejudica sua implementação em instrumentos práticos de gestão.
Desde os anos 2000, várias iniciativas promovem abordagens mais plurais. Em especial, a Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES, em inglês, www.ipbes.net) avançou nesse sentido, desafiando até mesmo a validade dos termos que lhe dão nome. Com contribuições acadêmicas e políticas do Sul Global e, particularmente, da América Latina, a IPBES reconhece que a “biodiversidade”, a “natureza” e os “serviços ecossistêmicos” estão enraizados na cultura ocidental. Por exemplo, “natureza”, em seu uso comum, está associada ao mundo material, incluindo plantas, animais e processos, onde os seres humanos não intervieram.
Entretanto, estudos etnoecológicos demonstram que, para a maioria dos 1.000 idiomas ainda falados nas Américas, não há distinção entre o natural e o social, mas sim uma única esfera inter-relacionada de “vida”, como evidenciado pelo trabalho da venezuelana Egleé Zent em conjunto com os Jotï que habitam a Amazônia. Outro exemplo vem da cosmovisão andina com seu conceito de “Pachamama”, que se baseia em uma relação diferente com o meio ambiente, pois não está simplesmente usando outro nome para a “natureza”, mas a entende como um indivíduo, o que implica outras responsabilidades, como acontece com uma mãe. Nesse sentido, a IPBES também ampliou o conceito de “bens e serviços” dos ecossistemas, com sua forte conotação economicista e utilitarista, e cunhou “contribuições da natureza para as pessoas” (CNG) para ser mais receptivo a outras visões de mundo, sistemas de conhecimento, culturas e idiomas a partir de uma perspectiva mais relacional e contextual.
Que aspectos ainda precisam ser incorporados?
Apesar dos avanços, ainda é necessário institucionalizar a avaliação pluralista da natureza com seus aspectos ecológicos, monetários, socioculturais e de saúde. Historicamente, os debates sobre conservação eram principalmente da esfera científica do Norte Global, mas sempre com implicações para as políticas ambientais em nível global. Atualmente, a conservação mais inclusiva incorpora ideias com um cunho “do Sul”. Por exemplo, a Estrutura Global de Kunming-Montreal não só busca conservar 30% da superfície do planeta até 2030 (conhecida como a meta “30×30”), mas também fazer isso com sistemas de governança equitativos que reconheçam os múltiplos valores e visões de mundo da natureza.
Agora estamos enfrentando o desafio de implementar essa mudança de paradigma, e é justamente na COP16, que está sendo realizada em Cali, Colômbia, de 21 de outubro a 1º de novembro, que um sistema de monitoramento para as Estratégias Nacionais de Biodiversidade e Planos de Ação (NBSAPs, em inglês) está sendo negociado e, portanto, dando um passo significativo para a institucionalização da conservação inclusiva.
O papel da América Latina
Nesse contexto, a América Latina tem um papel privilegiado a desempenhar, pois conta com pensadores de destaque que abriram espaços conceituais que permitem essa diversidade de vozes, ou o que o colombiano Arturo Escobar chama de “pluriversos”, em oposição ao pensamento ocidental que pressupõe uma única forma de pensar – fazer o “universo”. Além disso, a região tem nutrido processos sociopolíticos de base relacionados a iniciativas indígenas, camponesas e afrodescendentes, cujos referentes alcançaram altos cargos governamentais em países como a Colômbia e o Brasil.
Além disso, na América Latina, vemos o efeito de um “Papa do Sul” liderando a Igreja Católica, propondo outra relação com a natureza no Laudato Si, ou o primeiro acordo ambiental latino-americano chamado Acordo de Escazú, que garante acesso à informação, participação e justiça em questões ambientais, o que representa um exemplo de relevância a nível global.
Não obstante o exposto, também vale lembrar que, apesar do potencial da região para co-construir esse novo paradigma, a América Latina continua sendo o continente mais perigoso para os defensores do meio ambiente, com 85% dos assassinatos em todo o mundo, de acordo com o relatório Global Witness 2023. Essa tragédia mostra que, apesar de sua liderança em questões socioambientais, ainda há muito a ser feito para materializar a recuperação do sentido da “vida” em todos os territórios.
Felizmente, há muitos aliados e encontramos formas complementares de vida em regiões tão diversas quanto o Japão, onde o conceito de satoyama se refere a paisagens culturais e ecológicas integradas, na África subsaariana, com o ubuntu que liga o indivíduo aos outros e ao entorno físico, ou na Nova Zelândia, onde foi desenvolvida uma definição de política de bem-estar nacional que incorpora a cosmovisão Maori, orientada pelos princípios de kotahitanga (trabalhar de forma coordenada), tikanga (tomar decisões alinhadas com os valores corretos), manaakitanga (aumentar o poder e a capacidade de agência dos outros por meio do respeito e do cuidado) e tiakitanga (administração responsável). Parece que a busca por “viver bem” tem manifestações semelhantes em todo o mundo.
Conclusão
No final de seu discurso na Cúpula Rio+20, o então presidente uruguaio Pepe Mujica afirmou que “quando lutamos pelo meio ambiente, temos que lembrar que o primeiro elemento do meio ambiente se chama felicidade humana”. Em seguida, ele citou filósofos romanos, gregos e aimarás. Essas palavras mostram o potencial da América Latina para repensar a conservação. A região deve agora aproveitar essa oportunidade para integrar a diversidade biológica e cultural e combinar as cosmovisões ancestrais com as perspectivas ocidentais.
Um novo paradigma baseado em equidade, diversidade, inclusão e justiça para as múltiplas vozes da conservação nos permitirá repensar o que é “viver bem”. Dessa forma, estaremos mais bem preparados para lidar com a extinção de espécies e a perda das contribuições da natureza para as pessoas, mas também para lidar com a redução das experiências com a natureza e a ameaça à diversidade cultural. Como um todo, essa “crise de valores” exige a recuperação de um sentido holístico de “vida”.
*Texto produzido em conjunto com o Instituto Interamericano de Pesquisa sobre Mudanças Globais (IAI). As opiniões expressas nesta publicação são dos autores e não necessariamente das suas organizações.
Autor
Ph.D. em Ecologia. Professor Titular na Universidade Nacional da Terra do Fogo (UNTDF) e Pesquisador Principal no CONICET. Co-líder da Nature’s Contributions to Argentina Network (CONATURAR) e Editor-Chefe da Conservation Biology.