A crise política que o Equador viveu nos últimos dias o coloca em posição central para a definição de tendências regionais cruciais sobre como abandonar modelos econômicos que combinam extrativismo e rentismo dos recursos naturais, e sobre cuja lógica se sustentam sistemas políticos baseados no clientelismo e na corrupção.
A América Latina não consegue abandonar sua vocação de ser provedora de matérias-primas para o sistema da economia mundial, o que a torna altamente dependente dos ciclos de expansão e contração.
Isso faz com que a busca de financiamento público reforce ainda mais a exploração excessiva da natureza. Esse é o caso quanto ao Brasil e a Amazônia, ou o da manutenção de privilégios que debilitam a posição fiscal de um país, como no caso das graves distorções da economia petroleira venezuelana.
Na “realpolitik” regional, o confronto tende a se polarizar entre os modelos políticos que promovem redistribuição via intervenção do Estado e os que se esforçam por liberalizar as forças de mercado. Ambas as linhas parecem se servir do extrativismo, cada qual a seu modo; uma para ampliar as margens de lucro das empresas e outra para reduzir formas de distribuição econômica associadas ao clientelismo e corporativismo. Ambas utilizam o Estado, de formas distintas, reduzindo sua capacidade de regulamentação e controle ou expandindo seus poderes de intervenção.
As medidas econômicas decretadas pelo governo de Lenín Moreno tentavam, de alguma forma, alterar essa lógica política, sob pressão do déficit público esmagador, produto da gestão rentista dos últimos 10 anos. As medidas provocaram uma mobilização social de enormes proporções, que colocou em risco a estabilidade democrática do país. A política de eliminação dos subsídios aos combustíveis combinava a certeza de ser tecnicamente correta e politicamente custosa ao mesmo tempo, e por isso o fracasso em aplicá-la pode ser atribuído, entre outros fatores, a uma percepção equivocada do governo sobre a magnitude e complexidade dessa operação.De fato, a ação devolveu o protagonismo do Conselho Nacional de Organizações Indígenas (Conaide), que havia sido neutralizado e fortemente atacado durante o governo de Rafael Correa.
Começando por uma paralisação nacional dos trabalhadores dos transportes, o Equador teve de encarar uma mobilização indígena em escala nacional, com força concentrada principalmente na região serrana.
Mas diferentemente de outras ocasiões, a violência, o vandalismo e as ações de delinquentes se fizeram sentir com muita força. Essas ações podem ser atribuídas aos indígenas? Uma revisão sumária de suas mobilizações anteriores revela sua firmeza e contundência, mas em nenhum momento delas a utilização de formas extremas de violência e vandalismo. Para o governo e para muitas vozes da sociedade civil, havia, em companhia dos protestos indígenas, uma clara intenção de de desestabilização impulsionada pelo ex-presidente Correa e seu movimento, agora denominado Revolução Cidadã.
A medida adotada sem dúvida tinha impactos diferentes sobre diferentes setores; a reação inicial veio dos sindicatos do setor de transporte; mas o impacto maior com certeza seria sobre as economias rurais que fornecem alimentos a baixo custo para a economia urbana. Uma lógica sob a qual se torna patente a desigualdade entre o campo e a cidade e que, paradoxalmente, é reforçada pelo subsídio. O impacto também é significativo nos setores médios e altos que teriam tido de pagar preços internacionais pelos combustíveis; para a economia do contrabando; para setores marítimos vinculados à pesca industrial; para as economias vinculadas à mineração ilegal, ao tráfico de drogas e especialmente à produção de cocaína. A medida além disso se enquadrava às exigências contemporâneas de combate à mudança do clima: o Estado não tem motivo para subsidiar a emissão de dióxido de carbono na atmosfera.
Para o governo, além disso, a eliminação do subsídios significava deixar de depender de crédito oneroso e colocar sob controle a equação perversa do déficit público e do endividamento, que vinha caracterizando o manejo da política econômica. A situação da economia do Equador não tem solução fácil: níveis de dívida superiores aos permitidos, petróleo comprometido em contratos de pré-venda até o ano de 2024, perda de capacidade de investimento público. Ou seja, a tempestade perfeita.
Os termos virtualmente ditados pelo movimento indígena na mesa de negociações obrigaram o governo a retroceder”
O desenlace, depois de 12 dias de conflito desgastante e que ameaçou desestabilizar o regime, parece ter devolvido o país ao seu momento anterior, deixando a sensação de que tentativa de racionalizar a economia foi infrutífera; os termos virtualmente ditados pelo movimento indígena na mesa de negociações obrigaram o governo a retroceder. Ainda que a pacificação que resultou em acordo tenha sido elogiada por todos, a sensação de que “nem todos ganharam” começou a surgir de imediato; o conflito deixou perdas humanas e materiais incalculáveis, e sua solução despertou velhas fantasmas que permaneciam adormecidos, os do racismo e regionalismo, especialmente entre a classe média das principais cidades, que assistiu aos conflitos do conforto de seus aparelhos eletrônicos.
Diversas perguntas derivam dessa análise. Existem diversas escolhas que podem ser comuns a governos e países distintos da América Latina: como projetar e implementar políticas que resolvam as contas fiscais e resolvam de vez o problema já tão antigo da desigualdade; como impulsionar o crescimento sustentável que não dependa de exploração excessiva das riquezas naturais. As soluções para o conflito nos revelam que a mobilização do Equador e seu desenlace estão fortemente implicados na definição de modelos políticos de gestão que tomam por base forças políticas antagônicas, e que os conflitos já não são locais mas sim pertencem a lógicas complexas da geopolítica mundial e regional. O cenário é muito complexo, mas nem assim a necessidade de novos acertos e soluções deixa de ser inadiável.
Foto de André Gustavo Stumpf em Foter.com / CC BY
Autor
Sociólogo. Lecionou em diferentes universidades do Equador e é autor de vários livros. Doutor em Sociologia pela Università degli Studi di Trento (Itália). Especializado em análise política e institucional, sociologia da cultura e urbanismo.