É preciso dizer com todas as letras: a crise climática que vive o Rio Grande do Sul (RS) já é a maior da história do Brasil. Já se sabe que são mais de 460 municípios afetados, o que representa cerca de 95% das cidades do estado, e alguns destes municípios com mais de 70% de suas populações atingidas. No total, de acordo com a Defesa Civil do RS, hoje são mais de duas milhões de pessoas afetadas, das quais mais de 600 mil tiveram que deixar suas casas. Ao falarmos de municípios e pessoas atingidas, falamos de cidades alagadas, destruídas e com muitas zonas já desocupadas. Tudo isso é o que, hoje, já se sabe, mas há muito que ainda não sabemos. Apenas quando a água baixar teremos uma melhor visão sobre a infraestrutura destruída, sobre condições de subsistência perdidas, sobre as perdas econômicas e, principalmente, sobre a quantidade de mortos.
Há, também, preocupações sobre os cenários pós-fenômeno: no curto prazo, precisaremos avaliar questões sanitárias e de saúde, como a contabilização de infecções e de doenças, cujos sintomas e diagnósticos podem ou não ser imediatos. No médio prazo, começaremos a ver os problemas econômicos para indivíduos e famílias que perderam tudo: de suas casas às suas condições de produção e reprodução da vida. O longo prazo é de difícil análise, mas já se sabe que a reconstrução infraestrutural, financeira e afetiva após desastres é difícil, custosa e dolorosa. Ou seja, essa já é a maior crise climática do país – e ainda nem conseguimos dimensionar seu tamanho.
Crise climática e ambiental no Brasil
A crise climática do Rio Grande do Sul pode ser inserida em um contexto geral da crise climática e ambiental no Brasil. Afinal, já estamos vivenciando os efeitos da mudança do clima em todo o país: secas, desertificação, mudanças no fluxo das chuvas, enchentes, incêndios e perdas de safras e de condições de produção agrícola e alimentar, além dos eventos extremos, que matam, deslocam e afetam milhares de pessoas ano a ano.
Em 2023, por exemplo, mais de 70 mil pessoas ficaram desabrigadas por impacto de eventos de origem hidro-geo-climática. Os dados são assustadores: neste mesmo ano, 93% dos municípios brasileiros registraram algum tipo de desastre natural que levou ao registro de emergência ou estado de calamidade pública.
O Brasil é hoje o sétimo maior emissor global de gases do efeito estufa (GEE) e, simultaneamente, vivencia as consequências do desmonte de seus instrumentos ambientais após a administração de Jair Bolsonaro. Desde que assumiu, o governo de Lula já promoveu iniciativas importantes no combate à crise ecológica, com notável destaque para a diminuição do desmatamento na Amazônia. No entanto, estas medidas ainda são insuficientes – e excessivamente morosas frente ao colapso que vivemos.
O desmonte das garantias socioambientais do Estado
No Rio Grande do Sul, a situação é especialmente grave. O estado é hoje o sexto maior emissor nacional de GEE do país – majoritariamente em função do modelo agropecuário. No entanto, o problema é muito maior que a contabilidade de emissões. A atual administração estadual é responsável por um verdadeiro desmonte das – já escassas – garantias socioambientais do estado. Em 2019, houve a aprovação do novo Código Estadual do Meio Ambiente, que mudou quase 500 pontos da versão anterior, levando ao desmonte do texto original, aprovado em 2000. A nova versão do código reduziu a proteção às áreas adjacentes a unidades de conservação, apagou estímulos à proteção ambiental, permitiu terceirizações que ajudaram a consolidar o desmonte estadual, enfraqueceu instrumentos ligados ao combate a incêndios florestais e liquidou o código florestal.
Houve, também, a promulgação da Licença Ambiental por Adesão e Compromisso (LAC), que, na prática, afrouxou a fiscalização ambiental; a ampliação da construção de barragens em áreas de preservação ambiental; além da aceleração da mineração predatória e da contratação de termelétricas movidas à carvão. Tudo isso mostra que os últimos anos foram de desmonte da estrutura de proteção ambiental em nível estadual.
Na capital Porto Alegre a situação também é desalentadora. A cidade, que já foi conhecida globalmente por suas políticas progressistas, por sua profunda participação social e por ser a sede do Fórum Social Mundial, hoje encontra-se abandonada, desestruturada, sofrendo com a falta de investimentos. Em 2023, o investimento em prevenção de enchentes, que já vinha caindo, foi de zero reais. Nos quatro últimos anos, é possível verificar que o corte de verbas impactou amplamente o sistema de proteção hídrica da cidade, implementado na década de 1970.
A manutenção precária causou grande parte dos danos, sobretudo a diques e a casas de bombas. Apesar dos notáveis esforços, o Departamento Municipal de Águas e Esgotos (DMAE), que tem sofrido com cortes de gastos e redução de pessoal, atualmente se vê com poucas condições de enfrentar a crise que a cidade vive. Ou seja, o sistema anti-enchente falhou e as casas de bomba não operaram por falta de manutenção e investimento.
No Rio Grande do Sul e em sua capital, o colapso climático e ambiental é sim resultado de um fenômeno global e nacional, mas é também – e sobretudo – consequência do desmonte dos instrumentos ambientais, de diminuição orçamentária do poder público e de desinvestimento em políticas sérias para enfrentar o colapso climático e ecológico. Ou seja, o que o estado e a capital vivem hoje é produto direto de um projeto político de diminuição do poder público.
As políticas devem ser fortalecidas para enfrentar as mudanças climáticas
Há respostas possíveis – mas precisamos de muito mais. De saída, é preciso fortalecer as políticas ligadas à mitigação das emissões de GEE e de reparação para as pessoas afetadas; porém, a palavra mais importante no momento é adaptação, ou seja, políticas para a redução de vulnerabilidades dos sistemas naturais e humanos frente à mudança do clima. No entanto, a agenda ligada à adaptação ainda é escassa.
Em nível internacional, é uma agenda subfinanciada quando comparada às agendas de mitigação, que já têm ao redor de si um ecossistema de finanças. Além disso, a governança climática internacional está atrasada em definições fundamentais, como a Meta Global de Adaptação e a arrecadação de fundos para a agenda, o que também dificulta o desembolso e a submissão de projetos para grandes fundos globais.
Em nível federal, o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima já têm avanços importantes, mas poucos e que definitivamente estão atrasados, como o Plano Clima – Adaptação. Além disso, ainda que já se saiba que é necessário pensar em uma infraestrutura resiliente e adaptada à mudança do clima, isto ainda não se reflete, por exemplo, no Programa de Aceleração de Crescimento (PAC) ou no planejamento federal como um todo.
O estado do Rio Grande do Sul está ainda mais atrasado neste aspecto: o Plano Estratégias para Ações Climáticas ProClima 2050 foi aprovado apenas em outubro de 2023 – e a maior parte de suas medidas ainda não saiu do papel. No nível municipal, em Porto Alegre isto sequer é uma discussão, o que já mostra o tamanho do problema.
Estamos assistindo, hoje, à maior crise climática do Brasil. Ela é resultado, simultaneamente, do desmonte dos instrumentos ambientais estaduais, da falta de investimento em prevenção municipal na capital e, mais amplamente, do atraso da reflexão estratégica sobre adaptação climática no país todo. Sem um planejamento sério, que passe por todos os níveis federativos, não haverá saída: o Rio Grande do Sul pode até se reconstruir, mas a próxima enchente virá e novamente vai destruir a infraestrutura, a economia e as vidas da população que ali habita.
Já que as mudanças climáticas já são a realidade, a única alternativa é pensar um mundo no qual se mitiga as emissões, mas que também se adapta para proteger os povos mais vulneráveis.
Autor
Coordenadora de projetos e investigadora da Plataforma CIPÓ. Investigadora do Observatório Político Sudamericano (OPSA) e do Centro de Teoria Social e Estudos de América Latina (NETSAL). Forma parte da coalizão "O Clima é de Mudança" e da Marcha Mundial das Mulheres.