Desde 2019, a partir das gestões de Jair Bolsonaro e Donald Trump, passamos a viver com um tema na mídia brasileira: a presença de aviões fretados pelo governo dos Estados Unidos no aeroporto Internacional de Confins trazendo brasileiros deportados. Entre outubro de 2019 e julho deste ano, atingimos a marca de 9.885 brasileiros em mais de 100 voos fretados. Nesse período de 4 anos e 10 meses, o estado de Minas Gerais (MG) recebeu uma média mensal de 170 deportados.
De tempos em tempos, matérias jornalísticas intensificam esse tema. Ganhou visibilidade durante os anos de pandemia e no período das últimas eleições presidenciais em ambos os países. Porém, o que vemos é uma forte tendência de reduzir o debate apenas ao número de deportados, que chegam mensalmente em MG, e uma tentativa em apontar se as deportações aumentarão ou não no futuro próximo.
A deportação aérea para Minas Gerais é apenas um dos tipos de deportações sofridas por migrantes brasileiros. Soma-se a isso o fato de que ela consiste em tão só uma etapa de um longo processo de violência sofrida por muitos desses compatriotas que buscam melhores condições de vida nos Estados Unidos.
Por que não denunciamos outras deportações em vigor?
O primeiro ponto é que os números do aeroporto de Confins não revelam a totalidade de brasileiros deportados. Trata-se apenas daqueles que foram deportados através de voos fretados dos Estados Unidos para Minas Gerais. Há, pelo menos, outros dois tipos de deportação que não conhecemos numericamente. A mais antiga e contínua é a de brasileiros que são deportados através de vagas ociosas em voos comerciais e não necessariamente chegam ao Brasil por Minas Gerais.
A outra, a mais crítica e pouquíssima conhecida, é a deportação de brasileiros para países que não o Brasil. Instituída pelo governo dos EUA, em 2019, a política migratória “Fique no México”, por exemplo, tem sido responsável pela retenção ou devolução de brasileiros solicitantes de asilo para o território mexicano. Além de violar o Estatuto do Refugiado das Nações Unidas ao negar a proteção de refúgio às pessoas que fogem de perseguição e tortura, essa política migratória deixa exposto esses solicitantes no México, sem acesso à ajuda humanitária. Nesses casos de deportados, não temos informações sobre o número de brasileiros e nem que tipo de violência sofrem quando retidos ou devolvidos para o México. Porém, o controle migratório dos Estados Unidos não parece ficar apenas em solo mexicano.
Recentemente, eles ampliaram sua presença no Panamá. O governo Biden sinalizou uma “ajuda” de US$ 6 milhões para o governo panamenho, na compra de equipamentos, transporte e logística para deportar migrantes que não apresentem bases legais para permanecer no país e que possam seguir em direção ao próprio EUA. A ideia parece ser fechar o cerco nas duas pontas da América Central.
Além disso, é sabido, também, que decisões arbitrárias contra brasileiros ocorreram dentro do próprio território estadunidense. Esse é o caso de 47 crianças brasileiras, filhas de haitianos, e que foram sumariamente deportadas para o Haiti. Nascidas no Brasil e na sua maioria com menos de três anos de idade, elas portavam apenas documentos comprovando a nacionalidade brasileira.
Contudo, a deportação através do aeroporto internacional de Confins é a mais abordada pela mídia. Provavelmente por termos números precisos e ter se tornado um processo contínuo, que caminha para atingir a marca de quase 10.000 deportados chegando nas condições mais adversas.
Minas Gerais e a resposta do governo brasileiro
O segundo ponto foi a escolha do aeroporto internacional de Confins como destino único e final dos voos fretados, por parte dos Estados Unidos. Há o argumento do próprio governo estadunidense de que a grande maioria dos brasileiros deportados são originários de Minas Gerais, estado historicamente conhecido por suas redes migratórias já estabelecidas para o país. Todavia, matérias de jornais demonstram que muitos desses brasileiros que chegam em Confins são de outros estados nacionais.
O terceiro ponto é a decisão unilateral por trás dessas deportações. Desde 2006, durante o segundo mandato do atual presidente, Lula, o Brasil havia abolido essa prática de deportação através de voos fretados. Em 2019, essa prática é resgatada pouco antes da pandemia. Em decisão unilateral adotada pelo governo Trump, Bolsonaro imediatamente acata. De outubro de 2019 até o final de seu governo, 7.639 brasileiros foram deportados por voos fretados dos Estados Unidos.
Passados esses turbulentos governos de extrema direita, tanto no Brasil quanto nos EUA, os governos seguintes não chegaram a um acordo para o fim dessas deportações. Ainda que Biden tivesse assinalado o fim de deportações aceleradas, o processo continuou. Ainda que o governo Lula tivesse dado claros sinais de que poderia anular as medidas diplomáticas tomadas pela gestão de Jair Bolsonaro, as deportações seguiram. O compromisso de ambos os lados arrefeceu. Desde o início do terceiro mandato de Lula, pouco mais de 2.000 brasileiros já desembarcaram em Minas Gerais.
Que empresas aéreas são essas?
O quarto ponto por trás dessas deportações trata das denúncias de violência causada pelas empresas aéreas. Relatórios produzidos pelo Center for Human Rights, da Universidade de Washington revelam que a ICE Air operations negligência uma série de violências produzidas por companhias áreas contratadas pela mesma, através de contratos secretos. Dentre elas, está a iAero Airways, responsável por quase 80% dos pouco mais de 100 voos para o Brasil, e a Omni Air International responsável por 9 voos.
Relatos de próprios brasileiros deportados evidenciam que nesses voos homens adultos foram tratados como criminosos. Embarcaram no mesmo voo em espaços separados de seus familiares, incluindo menores, tiveram pernas e mãos acorrentadas nos Estados Unidos e só foram retiradas horas antes de o avião aterrissar em Minas Gerais. Os deportados sobrevoaram o território brasileiro acorrentados pelas autoridades norte-americanas, violando, assim, a legislação brasileira.
Migrar é um direito humano
O último e não menos importante ponto é sobre como tratamos esses brasileiros. Ainda que matérias indiquem que haviam procurados pela Polícia Federal entre esses quase 10.000 deportados, não podemos generalizar. É comum encontrar em matérias adjetivos como “ilegais”, “clandestinos” ou “vermes” capazes de “infestar” ou “empobrecer” a autoproclamada “América”. Migrar não é crime, mas um direito humano por melhores condições de vida.
Em novembro deste ano teremos novas eleições presidenciais nos Estados Unidos. Em um país que gradativamente perde sua hegemonia econômica e militar, que desesperadamente sustenta governos abusivos e nada democráticos ao redor do mundo e que vê sua classe média se distanciar, cada vez mais, do “American Way of Life”, a migração torna-se novamente pauta de campanha. Kamala Harris e Donald Trump prometem, cada um ao seu modo, manter uma política ofensiva contra os migrantes.
Por outro lado, ao contrário do que foi indicado pela equipe do governo brasileiro, ainda em 2022, medidas contrárias aos cidadãos brasileiros e que ferem sua proteção não foram revogadas pelo estado brasileiro. Enquanto isso, a deportação de brasileiros através de voos fretados pelo EUA para Minas Gerais, com todos seus abusos, segue mensalmente. Já aqueles devolvidos para outros países, nada sabemos.
Autor
Professor da Universidade Estadual de Montes Claros - UNIMONTES (Brasil). Doutor em Sociologia pela Goldsmiths University of London. Especialista em migração internacional de brasileiros e regimes fronteiriços.