O tema da imigração em Portugal ganhou novas configurações em 2023, quando o país alcançou a marca de um milhão de estrangeiros registrados – número que dobrou em cinco anos. A comunidade brasileira, com cerca de 368 mil residentes, lidera esse crescimento e é maior grupo migratório presente no país. E esses dados não incluem imigrantes naturalizados ou os cerca de 400 mil brasileiros que aguardam regularização.
O crescimento exponencial da imigração de brasileiros e de pessoas de outras nacionalidades em Portugal não encontrou resposta adequada nas políticas públicas portuguesas, o que resultou na exclusão de muitos imigrantes de direitos sociais. Além disso, o aprofundamento dos problemas de moradia no país, com a alta nos preços dos aluguéis nas grandes cidades; a realidade dos baixos salários e de maior demanda do sistema público de saúde impuseram questões a serem enfrentadas pelo campo político português, até então dominado pelo bipartidarismo do Partido Socialista (PS) e do Partido Social Democrata (PSD). Nesse contexto, a política migratória portuguesa, vista como uma das mais abertas da União Europeia, começou a mudar em 2024 com a implantação de medidas, como a do fim da Manifestação de Interesse após a entrada no país, implantada em 2017, que afetou diretamente a imigração brasileira.
Esse cenário colocou a questão da imigração no centro do debate público em Portugal, contribuindo, para alimentar, entre os portugueses, a percepção dos imigrantes como um problema e abrindo espaço para discursos anti-imigração mais contundentes. A relação entre migração e problemas sociais enfrentados pelo país passou a ser explorado pelos movimentos de extrema-direita que vêm crescendo e atuando em Portugal para restringir o acesso de imigrantes a direitos sociais e defender políticas excludentes com o argumento de proteção do bem-estar da população nativa.
O papel do Chega e o nacionalismo transnacional
O partido de extrema-direita Chega, fundado em 2019, consolidou-se como a terceira força política do país nas eleições de 2024, com 48 deputados eleitos. Essa ascensão representa uma ruptura com o histórico consenso pró-imigração que predominava desde a redemocratização, promovido pelo PS e PSD. A postura do Chega reflete influências de movimentos nacionalistas transnacionais na Europa e nos EUA, com adaptação ao contexto local de uma retórica de “nós contra eles” e de rejeição ao multiculturalismo. Krzyżanowski e Halikiopoulou observam que os discursos anti-imigração polarizam a sociedade, criando uma divisão entre um “nativo moralmente puro” e um “imigrante perigoso”, transformando a questão migratória em um embate nacionalista e um campo de disputa de ideologias xenofóbicas e racistas.
O fortalecimento dos discursos anti-imigração em Portugal, assim como em outros países, se enraíza em retóricas que instrumentalizam o medo coletivo ao definir os imigrantes como ameaça à segurança nacional e à homogeneidade cultural. Mas não qualquer imigrante. Brasileiros brancos, de classe média e com maior proximidade cultural, são mais bem vistos e, inclusive, têm demonstrado, em alguns casos, apoio às propostas do Chega em Portugal. Quanto mais afastado do sujeito universal e eurocêntrico (branco, ocidental, cristão, masculino, heterossexual), o imigrante é posto como responsável por crises e inseguranças sociais, o que tem colaborado para mascarar as causas estruturais das desigualdades e precariedades vividas pela sociedade portuguesa.
O uso das redes sociais e a disseminação de desinformação aceleraram o crescimento das narrativas anti-imigração. A literatura acadêmica tem evidenciado que as plataformas digitais onde se manifestam muitos ativistas anti-imigração ou, ainda, apoiadores da juventude do Chega, têm não somente facilitado a propagação, mas também moldado os discursos de ódio e a normalização de estereótipos que associam imigrantes à criminalidade e à degradação urbana. No caso português, discursos anti-imigração difundidos nas redes incluem temas como “substituição populacional” e “superioridade cultural”, que evocam uma “ameaça” à soberania nacional.
‘Desdemocratização’ e racialização das migrações
O processo de “desdemocratização” descrito por Isabel Ferin Cunha sugere que o fim do Estado de bem-estar social na Europa, juntamente com a ascensão da ideologia neoliberal após 2008, contribuiu para a construção do imigrante como bode expiatório dos problemas sociais. Em Portugal, a precarização do cotidiano, especialmente em relação ao aumento de custo de vida, reforça a percepção de que os imigrantes estariam “ocupando” o espaço dos nativos no mundo de trabalho e sobrecarregando os serviços públicos.
No discurso dos ativistas de extrema-direita, os imigrantes são vistos como ameaças à “identidade nacional”, conceito ancorado em uma visão racializada que privilegia certas características fenotípicas como condição de pertencimento. Essa narrativa de “pureza cultural” ecoa práticas nacionalistas e coloniais pautadas por uma suposta superioridade europeia que busca preservar uma homogeneidade racial em detrimento da pluralidade cultural.
Tudo isso tem resultado no aumento da violência contra imigrantes. Casos como o da brasileira atacada verbalmente no aeroporto de Lisboa no final de 2023, do pernambucano Saulo Jucá, espancado violentamente na cidade de Braga no ano passado e até mesmo situações fatais como o de Odair Moniz, morto pela polícia em Amadora no mês de outubro, tornam-se cada vez mais frequentes. Este último, resultando em protestos contra a violência policial que ganharam as ruas de Lisboa, evidenciando a polarização social e os impactos do discurso anti-imigração na sociedade portuguesa. Em resposta, o Chega organizou manifestações em apoio à polícia a fim de legitimar a violência contra imigrantes, sob a justificativa de defesa nacional. O que contribui para fomentar a divisão na sociedade portuguesa e ameaça a convivência democrática.
Embora o posicionamento anti-imigração em Portugal ainda seja incipiente em comparação a outros países europeus, ele demonstra sinais de crescimento e maior visibilidade na esfera pública, o que pode atingir ainda mais a comunidade brasileira e latina migrante. Dada a continuidade do fluxo migratório e o crescimento da extrema-direita no país, é provável que a questão da imigração permaneça como uma pauta central no debate político português, pressionando o país a refletir sobre sua identidade multicultural e ao mesmo tempo apontando para os riscos de uma possível reconfiguração na política migratória e democrática de Portugal nos próximos anos.
Autor
Professora da Escola Superior de Publicidade e Marketing, ESPM (São Paulo). Coord. do grupo de pesquisa Deslocar - Interculturalidade, Cidadania, Comunicação e Consumo. Pesquisadora do Instituto de Comunicação da Univ. Autônoma de Barcelona.
Pesquisador de pós-doutorado na Escola Superior de Publicidade e Marketing, ESPM (São Paulo, Brasil), com bolsa do CNPq. Doutor em Comunicação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Membro do grupo de pesquisa Deslocar - Interculturalidade, Cidadania, Comunicação e Consumo.