O Brasil possui uma sociedade profundamente marcada pelo legado do sistema colonial, o qual tem perpetuado práticas racistas desde o século XV. Essas relações de racismo não se limitam apenas ao contexto interno do país, mas também se estendem ao cenário internacional. A partir de algumas reflexões sobre a atuação do Brasil no Haiti, indagamos o que seria uma política externa antirracista, em um momento de relevância das políticas externas feministas e da retomada dos debates pela criação de um Conselho Nacional de Política Externa para o Brasil, o CONPEB.
O processo de construção do Brasil como nação esteve intimamente ligado ao modelo ocidental imposto pelas metrópoles coloniais, que, ao longo do tempo, conseguiram se afirmar como as principais potências no cenário global. A descolonização, nesse contexto, foi bastante limitada aos parâmetros definidos pelas antigas metrópoles. Assim, a ascensão dos novos Estados-nação nos séculos XIX e XX seguiu uma lógica exclusiva e excludente, porquanto impôs-se uma adesão ao sistema mundial vigente marcado por estruturas racistas e eurocentradas.
Países considerados em desenvolvimento ou subdesenvolvidos foram inseridos com base na divisão de trabalho global, que os colocava em uma posição subordinada. Isso reforçou uma estrutura de dominação política, social e cultural, que, de acordo com o sociólogo Aníbal Quijano, refletiu sobre a transição do colonialismo rumo ao imperialismo. Como resultado, falamos de “colonialidade do poder”, um fenômeno baseado no capitalismo global em expansão e que se assentou sobre a diferença racial.
Além da política entre os Estados, a gênese do campo de estudos das Relações Internacionais está diretamente conectada a esse sistema internacional capitalista e racista. A atual onda de descolonização dos estudos da área busca romper com o cânone ocidental e norte-atlântico, questionando o racismo científico dos séculos XVIII e XIX e promovendo a inclusão de sujeitos, perspectivas e narrativas antes marginalizadas e silenciadas. De acordo com as pesquisadoras Arlene Tickner e Karen Smith, é preciso questionar a própria forma como o conhecimento é produzido, desafiando a origem e o caráter universal das categorias e conceitos, além de reconhecer as múltiplas visões que existem fora do eixo norte-atlântico.
Diante desse cenário, a política externa brasileira (PEB) surge como um campo de debate importante. Desde um “lugar” periférico, o Brasil deve-se propor e promover agendas globais mais inclusivas e antirracistas. A valorização de vozes historicamente subalternizadas e a crítica a um sistema internacional racista são elementos fundamentais na articulação coerente entre as políticas nos planos doméstico e internacional, que atente para o papel do Brasil como representante do Sul global. De fato, para a transformação da ordem mundial e justiça social, é fundamental que a PEB se comprometa com a superação do racismo estrutural que ainda permeia a governança global e suas instituições.
Entendemos que uma política antirracista é a busca pela igualdade étnico-racial, com vistas à reparação histórica. No que compete às políticas públicas locais e globais, isso significa garantir que todas as pessoas, independentemente de sua origem étnica ou racial, tenham acesso igualitário a direitos, benefícios e oportunidades em todos os aspectos da vida. Portanto, esse deve ser o grande objetivo do Brasil: comprometer-se com a erradicação de todas as formas de discriminação social, a inclusão étnico-racial e a garantia de que todos os cidadãos tenham acesso aos bens e serviços públicos, além da participação ativa e efetiva na vida democrática.
O Brasil deve buscar justiça social global, rejeitando uma governança pouco representativa e narrativas salvacionistas que ocultam práticas imperialistas, como as observadas na Missão de Estabilização da ONU no Haiti (MINUSTAH).
A análise e a gestão da política externa deveriam priorizar o combate ao racismo, utilizando indicadores étnico-raciais e de gênero. Além disso, a participação social é essencial para incluir diversos grupos na construção, implementação e avaliação da política externa brasileira (PEB), focando no enfrentamento do racismo estrutural e institucional em níveis local e global.
Uma proposta importante é a criação de um Conselho Nacional de Política Externa Brasileira (CONPEB), que seria um espaço de participação ativa da sociedade civil na instrução e nas decisões no âmbito da política externa. Esse conselho teria um papel fundamental na democratização da política externa, permitindo que grupos sociais historicamente marginalizados, como as populações negras, quilombolas e indígenas, possam influenciar as decisões e garantir que suas demandas sejam ouvidas.
A criação do CONPEB seria essencial para assegurar consistência democrática frente a governos antidemocráticos, como o de Jair Bolsonaro, e para fortalecer o diálogo e a atuação em governos progressistas, consolidando o compromisso do Brasil com os direitos humanos no cenário internacional.
Em 2024, a proposta do governo brasileiro de criar uma Cúpula Social no G20, foi um exemplo do esforço para revitalizar a participação social nas discussões de política externa. Como apontado por diversas especialistas, essa iniciativa, juntamente com a criação do Sistema de Participação Social pelo atual governo Lula (2023-), poderia colaborar para que diferentes grupos da sociedade civil, como movimentos sociais, ONGs, organizações acadêmicas e outras entidades, assumam papel ativo na formulação de princípios, definição das prioridades e objetivos da política externa do Brasil.
O CONPEB poderia fortalecer, por exemplo, a Cooperação Sul-Sul, promovendo novos parâmetros para a cooperação internacional e o desenvolvimento dos povos e países. Rumo à construção de uma política externa mais estruturada, menos sensível às mudanças de governo e mais ativa quanto aos princípios constitucionais brasileiros, o CONPEB poderia servir como um fórum de diálogo, incorporando e, ao mesmo tempo, influenciando redes transnacionais de movimentos sociais, como os movimentos negros, de camponeses e indígenas, que ganham crescente importância na governança global no presente.
Como argumentamos em nossa pesquisa “Por uma política externa antirracista para o Brasil: a oportunidade apresentada pelo Haiti”, a ser publicada em breve, é urgente que o Brasil assuma um caráter antirracista para sua política externa. Isso significa estabelecer laços mais cooperativos e solidários com países do Sul global, por meio de um compromisso que recupere as demandas dos povos excluídos por mais justiça social na estrutura da governança global. Especialmente se o país almeja promover mudanças significativas na estrutura de exploração capitalista global, é preciso abrir o Itamaraty à participação social. Embora de natureza consultiva e limitada a atores com conhecimento e experiência nas diferentes agendas da governança global, o CONPEB permitirá o envolvimento de novos grupos sociais com a agenda externa, com atenção para a diversidade étnico-racial brasileira e as relações do Brasil com o mundo afrodiaspórico.
Autor
Doutor em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC. Prof. do Inst. de Relações Internacionais e Defesa da Univ. Federal do Rio de Janeiro e Prof. Colaborador no Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos da Defesa e Segurança da Univ. Federal Fluminense.
Pesquisadora, professora e pós-doutoranda CAPES na Universidade Federal de Goiás (UFG), ativista e profissional da cooperação internacional Sul-Sul no Centro de Estudos e Articulação da Cooperação Sul-Sul (ASUL), atualmente é orientadora substituta do CONSEA