Uma região, todas as vozes

L21

|

|

Leer en

Imaginação “a partir de baixo”: repensar o futuro em tempos de Antropoceno

Diante à crise planetária do Antropoceno, as repostas mais potentes não vêm das cúpulas globias, mas dos territórios que reinventam o futuro a partir de baixo.

Se há algo que destacou a humanidade, é sua capacidade de imaginar, recriar e construir horizontes de futuro. No entanto, diante da tripla crise planetária — englobada pela poluição, pelas mudanças climáticas e pela perda de biodiversidade — nossa capacidade de imaginar respostas e ações coletivas tem sido enfraquecida, pelo menos nas altas esferas políticas internacionais e intergovernamentais, que estão encontrando limites para uma governança “de cima”.

“A partir de baixo”, na América Latina, o panorama é outro. Existe uma diversidade de propostas e experiências que interpelam a policrise que atravessamos como sociedade global. Talvez seja o momento de considerar seriamente propostas locais, com enfoque territorial, que não sejam apenas ambientalmente sustentáveis, mas também socialmente justas. Só então seremos realmente capazes de gerar as transformações necessárias para enfrentar a crise múltipla.

As grandes paradoxos do Antropoceno

Ao longo do último século — e especialmente nas últimas décadas — assistimos aos mais altos níveis de desenvolvimento científico, tecnológico e social, seja em saúde, educação ou em questões ambientais, entre outras áreas. Um exemplo foi o manejo internacional da pandemia de Covid-19, que marcou um antes e um depois na gestão pública da emergência por parte de organismos intergovernamentais em conjunto com o sistema científico e político. Não apenas por ter evidenciado as ameaças das mudanças climáticas, mas porque mostrou que é possível tomar medidas coletivas em tempos de emergência.

A pandemia também evidenciou a face oculta dos avanços tecnológicos e sociais: o modelo de desenvolvimento capitalista baseado, fundamentalmente, na exploração desenfreada da natureza, que tem colocado em risco a vida no planeta.

O nível de transformação do mundo é tão impactante que alguns cientistas propuseram denominar nossa época como a do Antropoceno, destacando que os seres humanos nos tornamos forças de mudança inexoráveis.

Ainda que não se tenha alcançado um consenso científico para renomear esta era, o Antropoceno é uma lente muito potente para refletir sobre as paradoxos da crise climática e ambiental — mas também para recriar a imaginação em tempos de crises múltiplas e construir horizontes comuns. Menos destrutivos e mais justos para a vida no planeta.

As paradoxos do Antropoceno são, em essência, as paradoxos da crise ambiental. A primeira delas está na própria denominação do “Anthropos”: todos os seres humanos são igualmente responsáveis pela crise atual ou precisamos estabelecer critérios claros para entender como chegamos até aqui? O Antropoceno, como conceito, apresenta certas limitações ao diluir responsabilidades, podendo obstruir discussões sobre estratégias de ação eficazes para enfrentá-lo. Se todos somos responsáveis, então ninguém o é.

A segunda paradoxo é a vulnerabilidade dos seres humanos diante da contínua onipotência de controle planetário. A Covid-19 é novamente uma amostra dessa fragilidade. Um vírus de origem zoonótica afetou rapidamente a população mundial, gerando uma pandemia sem precedentes e colocando em xeque o sistema social, econômico e político global. O reverso dessa fragilidade é a ideia de onipotência e controle da natureza que predominou ao longo da história. Aqui, o homem se distingue das demais espécies por sua capacidade de transformar, controlar e domesticar a natureza por meio da ciência e da tecnologia.

A terceira paradoxo do Antropoceno reside no risco existencial em que nos encontramos. Estamos vivenciando a maior ocorrência de eventos extremos como ondas de calor, incêndios e inundações — fruto das mudanças climáticas. Esse é apenas um dos eixos do quebra-cabeça que gera efeitos em cascata de vulnerabilidades crescentes e desiguais no mundo.

Nesse contexto, por que não pensar o Antropoceno como uma oportunidade de emancipação, por meio da construção de uma nova consciência planetária, mas baseada no local, nas relações sociais e de cuidado que se constroem a partir dos territórios? Talvez uma forma de começar seja conectar o Antropoceno com experiências locais de transformação que já estão acontecendo e que tornam este mundo mais habitável. Essa pode ser uma oportunidade para sermos ousados e reimaginar transformações sociais, éticas e tecnológicas que deem lugar a formas renovadas de vida — mais sustentáveis, justas e democráticas.

Ação climática a partir do território

A busca por esse horizonte coletivo, baseada na imaginação “a partir de baixo”, não é apenas uma ideia conceitual: são práticas concretas, muitas vezes invisibilizadas, que abrem caminhos a partir do local e do territorial. Não é preciso ir longe — na América Latina podemos encontrar uma grande diversidade de propostas e ações emancipadoras, tanto no campo quanto na cidade. Por meio de sua capacidade de resistência, reinvenção e recriação de imaginários coletivos, a região se converte em uma fonte de alternativas diversas para interpelar nosso modo de habitar o Antropoceno.

Uma das experiências mais potentes — e menos visibilizadas — nas cidades é a das cooperativas de catadores urbanos da região. As cooperativas e os catadores são atores-chave na sustentabilidade das cidades. A separação de resíduos, a coleta, o armazenamento e a recuperação de materiais recicláveis são práticas cotidianas que não apenas contribuem para o cuidado ambiental, mas também sustentam economias populares, comunitárias e solidárias. Longe de serem simples gestores de resíduos, os catadores urbanos ressignificam o que a cidade descarta, transformando lixo em recurso da economia circular, dando novos usos a resíduos que, de outra forma, terminariam contaminando os oceanos ou em aterros das grandes cidades.

O que fazemos com nossos resíduos? Sabemos para onde vão? Separá-los na origem faz diferença? Essas são algumas perguntas necessárias para estabelecer conexões. Inclusive, a conscientização sobre esses processos pode ser a chave para ampliar a imaginação, demandar políticas públicas e criar melhores condições de apoio às iniciativas locais.

Outra experiência de conexão com o Antropoceno é a produção de alimentos. De onde vêm os alimentos que consumimos? Quem os produz? Como circulam e chegam às nossas mesas?

Segundo dados da FAO, 70% da produção de alimentos provém da agricultura familiar, tem caráter diversificado e resiliente, e pode oferecer respostas às necessidades sociais, econômicas e ambientais frente às mudanças climáticas. Com uma baixa porcentagem de propriedade da terra, a agricultura de pequena escala é a que mais contribui para a segurança alimentar. No entanto, uma abordagem integrada do sistema alimentar também exigirá a inclusão de dietas mais saudáveis, a redução do desperdício de alimentos e um maior apoio à produção agroecológica e camponesa-indígena.

Essas experiências ilustram como a imaginação “a partir de baixo” não espera grandes soluções tecnocráticas, mas atua a partir do cotidiano, transformando o presente com criatividade, compromisso e resistência. Em tempos de Policrise, é necessário reconhecer e visibilizar as ações que já estão acontecendo nos territórios. A produção de alimentos e as ações de reciclagem com inclusão social nos lembram que os caminhos para a sustentabilidade e a justiça climática podem — e devem — ser construídos a partir do local, das margens, por aqueles que foram historicamente invisibilizados.

Em última instância, se quisermos enfrentar o Antropoceno com seriedade, precisamos colocar em diálogo a imaginação e as práticas que surgem “de cima” com aquelas desenvolvidas “de baixo”. Gerar alianças inclusivas que possam transformar a crise em oportunidade. Aproveitemos a imaginação que já existe em nossa região para transformar o caos em um horizonte de mudanças.

Este texto integra a colaboração entre a Organização dos Estados Ibero-americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura (OEI) e a Latinoamérica21 para a divulgação da plataforma Vozes de Mulheres Ibero-americanas. Conheça e participe da plataforma clicando AQUI.

*Tradução automática revisada por Janaína da Silva

Autor

Otros artículos del autor

Professora e Doutora em Antropologia pela Universidade de Buenos Aires (UBA). Pesquisadora do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (CONICET), Argentina.

spot_img

Postagens relacionadas

Você quer colaborar com L21?

Acreditamos no livre fluxo de informações

Republicar nossos artigos gratuitamente, impressos ou digitalmente, sob a licença Creative Commons.

Marcado em:

COMPARTILHE
ESTE ARTIGO

Mais artigos relacionados