Em setembro de 1964, após ser perseguido e preso pela ditadura militar que se instaurou no Brasil, o filósofo e pedagogo Paulo Freire partiu com a família para o exílio aos 43 anos de idade. Um ano antes, junto a um grupo de universitários, Freire havia concluído o projeto de alfabetização de 300 adultos em um período de 40 horas, na cidade de Angicos, interior do Rio Grande do Norte, no nordeste do Brasil. Nos anos 60, segundo dados do Ministério da Educação, 15,9 milhões de brasileiros acima de 15 anos (39,6% da população do país) não sabiam ler e escrever.
O exílio intra e extrarregional
Em seus 15 anos de exílio, que iniciou na Bolívia, Freire viveu experiências político-educativas em vários países dos cinco continentes como Chile, Estados Unidos, Suíça, Guiné Bissau, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde, Austrália, Itália, Nicarágua, Ilhas Fiji, Índia e Tanzânia. Em Pedagogia da Esperança, obra em que compartilha algumas das lembranças e sentidos sobre sua experiência de exilado, Paulo Freire descreve o exílio como uma espécie de “ancoradouro” que lhe tornou possível “religar lembranças, reconhecer fatos, feitos, gestos, unir conhecimentos, soldar momentos e re-conhecer para conhecer melhor”.
Em Conversa com Frei Betto, extraída do livro “Essa escola chamada vida”, Freire diz o seguinte: “Para mim, o exílio foi profundamente pedagógico. Quando, exilado, tomei distância do Brasil, comecei a compreender-me e a compreendê-lo melhor […]. Foi tomando distância do que fiz, ao assumir o contexto provisório, que pude melhor compreender o que fiz e pude melhor me preparar para continuar fazendo algo fora do meu contexto, e também me preparar para uma eventual volta ao Brasil”.
Na sua primeira noite de exílio em La Paz, quando ainda não sofria do mal de altitude que lhe afetou na chegada à cidade, Freire refletiu sobre o que nomeou de “educação da saudade” e sua relação com a Pedagogia da Esperança. Para o educador, viver o cotidiano do exílio implicava em construir não apenas afeição, mas também reflexão crítica. A capacidade crítica de mergulhar na dinâmica cotidiana de um novo espaço-tempo, sem preconceitos, e indagar sobre ele, permitiria ao exilado uma compreensão histórica de sua própria situação.
Quando chegou ao Chile, onde atuou durante cinco anos em programas de educação de adultos no Instituto Chileno para a Reforma Agrária, Freire passou a lembrar dos saberes que carregava na memória de seu próprio corpo e que passaram a serem vividos intensa e rigorosamente nos novos espaços de exílio. Dentre eles, o respeito às diferenças culturais e ao contexto em que o exílio é vivido, a crítica à “invasão cultural”, à sectarização, assim como a defesa da radicalidade, princípio que o autor desenvolve na obra Pedagogia do Oprimido.
A potência universal da obra de Freire se constrói justamente na síntese dessa trajetória de deslocamento construída na intersecção entre as particularidades dos saberes e memórias levados ao exílio e de outros construídos nas interações culturais possibilitadas por sua condição de exilado.
A educação como um ato político, humanizador e transformador, e como prática dialógica orientada à produção de autonomia e leitura crítica do mundo, como princípio universal que fundamenta a obra freireana, encontrou ampla acolhida em diferentes contextos internacionais.
Reconhecimento internacional, segundo exílio e legado
Nomeado patrono da educação brasileira no ano de 2012 e autor do método de alfabetização que completou 58 anos em 2021, Paulo Freire se tornou o terceiro teórico mais citado em trabalhos acadêmicos no mundo.
Em 1969, Paulo Freire foi professor visitante na Universidade de Harvard e, durante dez anos, atuou como consultor especial do Departamento de Educação do Conselho Municipal das Igrejas, em Genebra. Foi agraciado com cerca de 35 títulos de Doutor Honoris Causa e, em 1986, recebeu o Prêmio Educação para a Paz, concedido pela Unesco.
A Finlândia conta desde 2007 com um centro dedicado a discutir a obra do educador brasileiro na cidade de Tampere. Há outros espaços semelhantes na África do Sul, Áustria, Alemanha, Holanda, Portugal, Inglaterra, Estados Unidos e Canadá. Na Alemanha, o método Paulo Freire tem sido inspiração para educação infantil e também utilizado em programas de integração de refugiados.
Na cidade de Estocolmo, na Suécia, Freire é lembrado, desde 1971, em um monumento público ao lado de outras sete personalidades como Pablo Neruda e Angela Davis. Após sua volta ao Brasil, Paulo Freire atuou como professor na PUC-SP e na Unicamp, e, de 1988 a 1991, ocupou o cargo de secretário municipal de Educação na Prefeitura de São Paulo.
No dia do centenário de seu nascimento, em 19 de setembro de 2021, o educador brasileiro foi lembrado e homenageado nacional e internacionalmente em meio às investidas do governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro e de seus apoiadores, que, dentre outros, responsabilizam Paulo Freire pela má qualidade da educação brasileira.
Em seu perfil no Twitter, um dos filhos de Bolsonaro acusou o Google de se manifestar a favor da decisão da Justiça brasileira que proibiu o governo federal de atentar contra a dignidade do educador. Nesse dia, Paulo Freire havia sido homenageado pelo Google com a inserção da imagem de seu rosto no logotipo do buscador em todos os países do mundo e com a publicação de um tweet no qual afirmava, dentre outros, que Freire é considerado um dos pensadores mais importantes na história da pedagogia mundial.
Expurgado do Brasil pela ditadura militar quando ainda era vivo, Paulo Freire é agora condenado a um segundo exílio em sua terra natal através do empenho recorrente do governo de Bolsonaro em sua criminalização e na destruição de seu legado. Contudo, o exílio, como estratégia de apagamento da memória política por parte dos governos autoritários, continua a ser ressignificado, pelo pensamento de Paulo Freire, como esse espaço provisório de criação, atualização e preservação de um legado pedagógico-político que é hoje patrimônio da humanidade.
Em Pedagogia da Esperança, publicado em 1992, Paulo Freire já lembrava das inúmeras ocasiões em que teve questionada sua condição de educador e foi criticado por sua politização exagerada, como ocorreu em um encontro da Unesco realizado em Paris com a participação de representantes latino-americanos. “Não percebiam, porém, que, ao negarem a mim a condição de educador, por ser demasiado político, eram tão políticos quanto eu. Certamente, contudo, numa posição contrária à minha. Neutros é que nem eram nem poderiam ser”.
Autor
Professora da Escola Superior de Publicidade e Marketing, ESPM (São Paulo). Coord. do grupo de pesquisa Deslocar - Interculturalidade, Cidadania, Comunicação e Consumo. Pesquisadora do Instituto de Comunicação da Univ. Autônoma de Barcelona.