A guerra na Ucrânia teve um grande impacto na política internacional, e a reação dos governos latino-americanos a esse conflito revelou posições diferenciadas. Alguns apoiaram abertamente a invasão russa, outros foram muito claros em suas críticas e condenaram a agressão russa, conforme demonstrado por seus votos na Assembleia Geral das Nações Unidas e na OEA. Além disso, alguns governos fizeram ziguezagues em seus votos e/ou se ofereceram como mediadores no conflito.
Embora a maioria dos governos latino-americanos tenha condenado a agressão russa nas Nações Unidas, esses mesmos governos rejeitaram o fornecimento de armas e a imposição de sanções e, em alguns casos, até aumentaram o comércio com a Rússia. O que pode parecer um comportamento ambíguo ou até mesmo contraditório não é caprichoso nem acidental; na verdade, representa uma abordagem racional para navegar nas águas turbulentas de um mundo multipolar sem comprometer os interesses nacionais.
O conceito de não alinhamento ativo se tornou bastante popular nos debates sobre o posicionamento da América Latina na política internacional e no conflito da Ucrânia. Mas surge a questão de saber se esse conceito é realmente o mais adequado para capturar as políticas dos governos latino-americanos e quais vantagens ele oferece em comparação com outros conceitos. Políticos e acadêmicos da Índia, por exemplo, preferem o conceito de multialinhamento como uma ferramenta para maximizar os interesses nacionais e preservar alguma autonomia estratégica.
Em vez de falar de não alinhamento ativo, talvez seja mais correto referir-se ao conceito de “oportunismo periférico”. Esse termo não tem a intenção de ser depreciativo, mas sim de descrever como os governos reagem a uma estrutura de oportunidades e riscos em constante mudança. A transição para um sistema internacional multipolar ampliou o espaço de manobra para os governos da periferia que, ao mesmo tempo, estão cientes das realidades do poder. De acordo com o “realismo periférico” desenvolvido por Carlos Escudé, esses governos reconhecem que há desigualdades estruturais na política internacional e que, portanto, as grandes potências não devem ser provocadas desnecessariamente.
Embora o posicionamento de um governo periférico em conflitos internacionais por si só não altere o equilíbrio global, assim como o acúmulo de posições periféricas, ele pode acarretar custos e benefícios. Portanto, a maioria dos governos segue uma estratégia de minimizar os riscos, mantendo um perfil discreto e protegendo-se das pressões e da influência exercidas pelas grandes potências. Tal estratégia não exclui a possibilidade de obter ganhos de curto prazo com a concorrência das grandes potências e a tentação de tomar partido em conflitos internacionais, desde que surja a oportunidade e os benefícios superem os possíveis custos. Na literatura de relações internacionais, essa estratégia é chamada de “hedging”. Entretanto, há motivos para se desviar dessa estratégia, especialmente se ela implicar custos muito mais altos do que o alinhamento com uma grande potência, ou se o alinhamento prometer mais benefícios.
Há também uma hierarquia na periferia. As opções estratégicas são diferentes para potências emergentes ou potências regionais (como o Brasil na América Latina) que são cortejadas pelas grandes potências e cujo posicionamento tem maior influência na política internacional. As potências emergentes, como a Índia ou o Brasil, podem promover uma estratégia mais proativa e preferir um alinhamento múltiplo. Para as potências emergentes ou regionais, o conflito ucraniano oferece uma oportunidade de aumentar ou consolidar seu status no sistema internacional. Enquanto uma estratégia de “hedging” visa ficar fora do conflito e passar despercebida, o alinhamento múltiplo é proativo e pode visar à inclusão em possíveis resoluções do conflito.
É possível argumentar que os conceitos acima capturam e caracterizam melhor as variações e diferenças nas reações dos governos latino-americanos ao conflito da Ucrânia do que o conceito de não alinhamento ativo. Esse conceito foi introduzido por Carlos Fortin, Jorge Heine e Carlos Ominami, três conhecidos intelectuais chilenos com carreiras na política, no meio acadêmico e no serviço diplomático, no contexto das crescentes tensões entre a China e os Estados Unidos. Posteriormente, os autores trabalharam para disseminar e popularizar o conceito e aplicá-lo às crises atuais, como o conflito na Ucrânia ou o conflito entre Israel e o Hamas na Faixa de Gaza.
As considerações básicas subjacentes ao conceito são muito simples, mas sobrecarregadas de simbolismo: no conflito entre os EUA e a China, os governos latino-americanos não devem tomar partido, mas devem ser guiados exclusivamente por seus interesses nacionais e tirar proveito da competição entre as duas superpotências. Para seus defensores, o não alinhamento não implica abster-se de expressar uma opinião e é perfeitamente compatível com a tomada de uma posição (crítica ou de apoio) em relação às decisões tomadas por qualquer uma das grandes potências. É por isso que eles o chamam de não alinhamento “ativo”. O posicionamento é baseado em convicções e é determinado principalmente pelos interesses nacionais. Essa linha de raciocínio não é muito convincente. Decidir de caso a caso e de questão a questão não é um não alinhamento ativo, mas sim um não alinhamento seletivo ou um alinhamento múltiplo, como definem os políticos da Índia. Essa descrição não é tão grandiloquente quanto
Para os autores do não-alinhamento ativo, os governos latino-americanos devem articular uma posição comum diante dos desafios globais. Mas tal postura não leva em conta as diferentes posições internacionais, os interesses divergentes de política externa e as diferentes dependências dos países latino-americanos. Além disso, implicaria em um alinhamento permanente das políticas externas dos governos latino-americanos e, portanto, contradiria uma política de não-alinhamento ativo da perspectiva de cada Estado.
O que é desconcertante é a falta de integração desse conceito em debates teórico-conceituais mais amplos no campo das relações internacionais, bem como o conhecimento insuficiente e o envolvimento com debates em outras regiões do Sul Global (especialmente na Ásia) e com os conceitos analíticos desenvolvidos lá. Isso atesta um certo paroquialismo latino-americano por parte dos defensores dessa abordagem. Outra deficiência do conceito de não-alinhamento ativo é que ele combina uma abordagem analítica com uma postura normativa para exigir e justificar um reposicionamento da América Latina na política internacional.
Por fim, os porta-vozes do conceito de não alinhamento ativo revelam uma visão de mundo altamente simplificada e distorcida que não diferencia suficientemente os interesses e a orientação da política externa dos países do Sul Global. Eles argumentam que a principal divisão no mundo de hoje é entre o Norte Global e o Sul Global, entre o Ocidente e o resto. Essa visão de mundo contrasta com outra, segundo a qual a ordem internacional é caracterizada por duas clivagens, uma entre o Ocidente Global e o Oriente Global, e a outra entre ambos e o Sul Global, que é visto como bastante heterogêneo e diverso em termos de recursos, configurações de poder, regimes políticos, modelos econômicos e sociais, valores e culturas. Para entender como os governos latino-americanos navegam nesse mundo multipolar cada vez mais complexo e conflituoso, são necessários conceitos que façam jus a essa complexidade e levem em conta tanto a multipolaridade quanto as desigualdades estruturais persistentes na política internacional entre o centro (ou centros) e a periferia.
Autor
Professora e pesquisadora da Faculdade de Ciência Política e Relações Internacionais da Universidade Nacional de Rosário (Argentina). Diretora do Grupo de Estudos sobre a União Europeia da UNR.
Pesquisador associado do German Institute for Gobal and Area Studies - GIGA (Hamburgo, Alemanha) e do German Council on Foreign Relations (DGAP). Foi Diretor do Instituto de Estudos Latino-Americanos e Vicepresidente do GIGA.