Uma região, todas as vozes

L21

|

|

Leer en

A “carabinerização” da segurança na América Latina

Alternativas efetivas, porém, não devem aparecer sob o lema de robustecimento da capacidade de atuação violenta das polícias sobre a população.

Os ministérios da Justiça e Casa Civil do Brasil estão discutindo um novo pacote de medidas legislativas ligadas à segurança pública. Liderado pelo ministro Ricardo Lewandowski, atual titular da pasta de Justiça e Segurança Pública do governo Lula, o projeto prevê a criação de um fundo federal para financiar projetos de segurança pública. Além do aumento de recursos, o projeto prevê importantes alterações constitucionais e mudanças no funcionamento de corpos específicos de polícia, visando a uma maior “carabinerização” da segurança no país, e como reflexo de dinâmicas regionais na área.

Buscando “aparelhar as políticas do Brasil e, sobretudo, o sistema de inteligência brasileiro”, nas palavras de Lewandowski, o projeto de lei prevê a inscrição do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) na Constituição brasileira. O SUSP “dá arquitetura uniforme ao setor nacional e prevê, além do compartilhamento de dados, operações e colaborações nas estruturas federal, estadual e municipal”, segundo a definição do MJSP. Para o ministério, a estrutura atual do SUSP não permite uma intervenção direta do governo federal na segurança cotidiana da população, além de permitir desacordo com os projetos levados a cabo pelos governos estaduais e municipais.

A proposta apresentada tem muitas semelhanças com outras experiências ocorridas recentemente na América Latina. Geralmente ligadas a mudanças constitucionais importantes, com um maior envolvimento dos governos nacionais na aplicação da lei, têm tido um resultado ambivalente ao qual é importante prestar atenção. Sobretudo, têm aumentado a liberdade de ação violenta de policiais contra a população, levantando importantes questões sobre a sua função política na atualidade.

O panorama latino-americano de federalização da segurança

Desde o início do século XXI, os países da América Latina reuniram suas preocupações sobre segurança sob as chamadas “ameaças à segurança pública”. Após a onda de liberalização e de democratização pela qual passaram os países da região nos anos 80 e 90, as ameaças de caráter militar e os níveis de desconfiança entre os países diminuíram grandemente.

Isso construiu um consenso regional sobre a ideia de que a principal ameaça à segurança das sociedades latino-americanas passava a ser não mais as tensões do cenário internacional, mas sim temas ligados à violência e à atuação de grupos criminosos. Esta visão se consolidou em 2003, com a assinatura da Declaração sobre a Segurança nas Américas que estabeleceu o crime como grande questão regional, sob o espectro da Guerra ao Terror então promovida pelos Estados Unidos. Esta percepção causou importantes modificações, ocorridas sob a administração de governos de diferentes matizes ideológicos.

Entre 2001 e 2020, trinta e cinco mudanças foram feitas por governos latino-americanos na organização, função e responsabilidades das forças de segurança. Muitas delas decorreram do processo de eliminação dos resquícios autoritários do século XX, e estiveram concentradas na década entre 2001 e 2011. Neste período, cinco países promoveram alterações nas suas legislações internas relativas às forças de segurança: Brasil, Peru, El Salvador, México e Chile. O Chile se destaca por ter feito o maior número de reformas na área de segurança, com revisões da Lei de Segurança do Estado em 2001, 2002, 2004, 2005 e 2010, e na Lei Antiterrorismo em 2002, 2003, 2005 e 2010.

Já na década seguinte, outros países começam a se destacar como os maiores promotores de mudanças nas suas forças de segurança. A mudança na lei que criminalizava o uso da maconha levou o Uruguai a uma mudança nas ações policiais no tema em 2013, e em 2014 o Ministério da Segurança foi criado pela primeira vez na Argentina. O Peru realizou alterações na atuação das forças policiais em 2015, e entre 2016 e 2018 foi a vez de El Salvador e do México de alterarem suas legislações. Nestes dois últimos casos, a mudança foi de endurecimento de penas ligadas à conexão entre instituições policiais e grupos criminosos.

Em 2019, o México anunciou a criação da Guarda Nacional, criada a partir da Polícia Federal Preventiva e que concentrou no Executivo federal a capacidade de atuação na área de segurança das localidades. Esta, porém, não é uma mudança isolada. O que tem ocorrido na América Latina é uma desresponsabilização de governos locais, departamentais e/ou estaduais em direção a uma concentração das responsabilidades e da capacidade de ação junto ao governo central ou federal da nação. É esta a proposta, por exemplo, do pacote que está em discussão no Brasil, que prevê a transformação da Polícia Rodoviária Federal em polícia ostensiva, sob comando do governo federal brasileiro.

A “carabinerização” da segurança latino-americana

As mudanças realizadas na área da segurança pública dos governos latino-americanos representam um importante fenômeno no panorama regional. A proposta brasileira de transformar a Polícia Rodoviária Federal em polícia ostensiva, além de ecoar experiências em outros países, levanta a questão da politização destes corpos policiais e sua indeterminação na América Latina. Basta lembrar que foi este o caminho adotado pelo governo mexicano: a Guarda Nacional criada em 2019 remonta à Polícia Federal de Caminhos, transformada em Polícia Federal preventiva em 2000 e em Polícia Federal em 2009. Dez anos depois, receberia não apenas uma nova nomenclatura, mas maiores responsabilidades.

Este processo está relacionado com a ideia de que os corpos de segurança, na América Latina, devem compor parte importante dos mecanismos de Estado na “guerra à criminalidade”. Esta retórica, porém, leva à construção de aparatos policiais que deixam de atuar enquanto mecanismo de solução de crimes e de reparação de danos e passam a se tornar instrumentos de repressão social. Não à toa, a própria Polícia Rodoviária Federal brasileira atuou fortemente para reprimir o acesso de eleitores a seções de votação nas eleições presidenciais de 2022.

Alternativas efetivas, porém, não devem aparecer sob o lema de robustecimento da capacidade de atuação violenta das polícias sobre a população. A desculpa do combate à criminalidade pode levar à adoção de medidas de exceção que levam cada vez mais ao extremo no combate ao crime: esta não é uma previsão, uma vez que a “guerra às gangues” de Nayib Bukele já realiza sistematicamente tortura sobre crianças e adolescentes com o verniz de combate ao crime. A transformação dos corpos de segurança latino-americanos em “carabineiros”, forças de segurança intermediária entre a guerra e o crime, tende a acentuar esta dinâmica na região, elemento de atenção para a garantia do exercício pleno dos direitos humanos e sociais das populações da América Latina.

Autor

Doutor em Geografia pela Unicamp. Investigador do Laboratório de Geografia Regional e Geografia das Relações Internacionais (LAGERE-GRI) da mesma instituição e Investigador Convidado do Centro de Estudos Interdisciplinares da Universidade de Coimbra (CEIS20/UC).

spot_img

Postagens relacionadas

Você quer colaborar com L21?

Acreditamos no livre fluxo de informações

Republicar nossos artigos gratuitamente, impressos ou digitalmente, sob a licença Creative Commons.

Marcado em:

COMPARTILHE
ESTE ARTIGO

Mais artigos relacionados