Co-autor Nicolás Selamé
O início de julho marcou um ano desde que a Convenção Constitucional chilena iniciou suas sessões. Hoje ela foi dissolvida, e em setembro os cidadãos decidirão mediante um plebiscito de ratificação se a proposta elaborada os satisfaz. Embora até alguns meses atrás se dava como certo que esta consulta produziria um resultado favorável à proposta da convenção, hoje o panorama mudou: diversas pesquisas apontam para um avanço a favor da rejeição, que muito provavelmente ganharia se o plebiscito fosse hoje.
Esta mudança deu lugar a um intenso debate acadêmico e político por diversas razões. Em primeiro lugar, existe uma grande preocupação em entender como foi que um processo com participação cidadã inédita perdeu tanto apoio da população, devolvendo-nos assim a um cenário de deslegitimidade dos atores políticos que a convenção deveria remediar. Em segundo lugar, porque existe consenso de que o país deve adotar uma nova constituição, mas não há um caminho claro que estabeleça as vias para isso no caso da vitória da rejeição à proposta plebiscitada.
A Convenção Constitucional nasceu como uma tentativa da elite partidária de canalizar a crise social e política mais grave que o país viveu em décadas. As mobilizações de outubro de 2019 articularam uma série de demandas que conquistaram amplo apoio cidadão, e foram marcadas por uma massividade e violência que pôs em xeque a institucionalidade vigente. No contexto de uma elite política em desordem, buscou-se dar credibilidade ao órgão, melhorando as condições de entrada para atores com baixa representação através de mecanismos de paridade de gênero, assentos reservados aos povos indígenas e maior abertura à participação de candidaturas independentes.
Estas condições competitivas, somadas a uma concorrência em massa de eleitores jovens que não votaram nos processos anteriores, resultaram em uma convenção onde prevaleceu uma inspiração anti-status-quo. Os setores conservadores, que costumavam ganhar cerca da metade das cadeiras no congresso, não conseguiram ganhar nem mesmo o terço que lhes assegurava a capacidade de bloqueio em votações de artigos. Em vez disso, os partidos de esquerda, junto com forças provenientes do mundo social articuladas em torno de uma retórica populista, foram a maioria indiscutível.
Muitos interpretaram esta composição como uma garantia de que as mudanças desejadas se concretizariam. Entretanto, também gerou vários dos problemas que a convenção viveu durante seu funcionamento. Em primeiro lugar, a eleição foi realizada em um momento em que os ecos da convulsão social ainda ressoavam na opinião pública, o que deu aos resultados um grau de radicalismo que parece não perdurar na população. Esta última, especialmente, por um forte aumento da criminalidade e da inflação, que mudaram as prioridades da população em relação àquelas que se instalaram na convenção.
Assim, boa parte da perda de popularidade da nova proposta constitucional parece residir em uma lacuna entre as aspirações dos cidadãos que elegeram a convenção e aqueles que agora devem aprovar ou rejeitar o que ela oferece.
Em segundo lugar, a entrada em massa de membros independentes na convenção – 64% do total de representantes, incluindo 35% que concorreram em listas independentes e 29% em listas de partidos – implicou na participação de muitos representantes que, embora contassem em princípio com o apoio cidadão, tinham pouca experiência e disposição à negociação política. Isto derivou em uma série de erros de forma e substância que a imprensa cobriu amplamente, e que levaram a um progressivo descrédito na convenção.
Ademais, tratando-se de pessoas que não vinham de organizações com uma agenda clara, muitas vezes do ativismo setorial, foi difícil imprimir ao texto uma visão harmoniosa e transversal. Um exemplo disso é o desenho do sistema político, onde poucos membros tinham uma posição definida e acabaram concordando com uma proposta no limite de tempo.
Não é tão estranho que, no cenário descrito, a rejeição da proposta constitucional tenha crescido. Entretanto, esta opção e seus líderes só parecem capitalizar o descrédito da nova proposta constitucional, encontrando sérias dificuldades para oferecer uma resposta à demanda de mudança que persiste transversalmente na cidadania, inclusive entre seus eleitores. Isto porque uma grande parte da liderança conservadora não acredita na necessidade destas mudanças, e a discussão a respeito fragmenta seriamente uma campanha que só foi articulada em um registro negativo frente à convenção.
Embora as pesquisas ainda não o registrem, a rejeição deve enfrentar sua etapa mais dura nos próximos dias. Isto porque, após meses aumentando seu apoio, deverá explicitar qual é o itinerário que consideram mais adequado para realizar mudanças constitucionais no texto vigente caso a proposta pela convenção seja rejeitada. Neste sentido, o setor tem sido complicado por declarações do presidente Gabriel Boric, que afirmou que o resultado do plebiscito de entrada, onde os cidadãos mandataram a redação de uma proposta via convenção constitucional, deveria ser respeitado mediante a convocação de uma nova convenção.
Embora não esteja claro que a proposta seja a mais popular entre uma cidadania crítica do trabalho da convenção recém finalizada, exigindo um novo acordo político para viabilizá-la juridicamente, a jogada de Boric põe pressão naqueles que impulsionaram a opção de rejeição sem esclarecer o rumo que as mudanças tomarão.
Por parte da aprovação, tem sido difícil para os líderes do setor sintonizar com o clima de opinião e defender a proposta como um ponto de partida e não de chegada. Neste sentido, vozes como a da ex-presidente Bachelet, que defende a aprovação do texto como um ponto de partida imperfeito, mas necessário para um Chile mais justo e equitativo, podem ser importantes para atrair uma cidadania que não quer incendiar o trabalho da convenção.
Resta saber se o resto do setor fará eco de suas palavras antes da eleição de setembro e abrirá a possibilidade de introduzir reformas no texto, caso seja aprovado. Isso depende, em grande medida, da possibilidade de reverter a situação adversa na qual a nova proposta constitucional se encontra.
Isabel Castillo é uma cientista política e pesquisadora pós-doutora na Escola de Governo da Universidade Católica do Chile. Pesquisador do Centro de Estudos de Conflito e Coesão Social. Membro da Red de Politólogas.
Nicolás Selamé é sociólogo e pesquisador. É mestre em sociologia pela Pontifícia Universidade Católica do Chile.
Autor
Professora do Departamento de Política e Governo, Universidad Alberto Hurtado (Chile). Pesquisadora do Centro de Estudios de Conflicto y Cohesión Social. Membro da Red de Politólogas.