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América Latina não é um conto de fadas

A América Latina não é um conto de fadas, mas Vladimir Propp e sua Morfologia do Conto podem servir para entendermos por que um certo tipo de relato plano vai se impondo entre informantes, especialistas e analistas para explicar o que se passa na região. Se trata de uma narrativa circular que recorre a tópicos unidos por linhas muito grossas que nos impedem de ver a diversidade e complexidade das causas dos problemas regionais e que, sobretudo, descartam toda a informação que contradiz as preferências personalíssimas dos autores, camufladas em uma espécie de sentido do “dever ser”. Tanto é assim que inclusive aqueles que se declaram objetivos a partir do “jornalismo de dados” não deixam de cair na tentação de omitir informação que gera dissonância cognitiva ou simplesmente usam o enquadramento adequado para que seus “números” se ajustem à sua visão do mundo.

Sem chegar até as 31 funções que Propp encontrou nas narrativas russas, em muitos dos relatos informativos ou de opinião sobre a América Latina identifico ao menos três elementos que explico abaixo e que podem ir juntos ou separados: utopia, caudilho e/ou decepção.

Ser um território de utopias parece apropriado já que fomos o Novo Mundo que inspirou o próprio Thomas More. No século XX, a utopia tomou a forma de Revolução, sendo Cuba – uma ilha igual a de More – a prova de que outro mundo era possível e que só faltavam Fideles e Ches para alcançá-lo. Chiapas foi o canto do cisne das utopias revolucionárias latino-americanas, um rico processo que teve como epílogo a transformação kafkiana do Subcomandante Marcos em Durito. Os “giros à esquerda” são as utopias do século XXI. Portanto, em cada nova eleição buscam o candidato de esquerda que liderará o processo que solucionará as profundas injustiças nacionais, esperando, ademais, que ele – que se supõe que será exitoso – se estenda a toda a região, marcando o caminho para superar o neoliberalismo global.

Para alguns, não basta que líderes e organizações participem das eleições buscando pôr em prática transformações que reduzam a pobreza ou rompam estruturas de desigualdade: eles sempre buscarão indícios que mostrem que “desta vez será a solução definitiva”. O problema não é que um ideal marque o sentido da mudança, mas que, muitas vezes, esses anseios respondem mais aos sonhos de certas elites do que às demandas sociais.

O caudilho é o facilitador da utopia e carrega os desejos do povo, encarnando a mística, a épica e a lírica de uma massa plebeia mais próxima dos personagens de Galeano do que de cidadãos autênticos. Para isso, informantes, especialistas e analistas outorgam ao caudilho – quer tenha ou não – virtudes e dons naturais ou sobrenaturais que o capacitam para transformar o rumo e o destino de todos, que vão desde a capacidade intelectual ao heroísmo, e que, em contrapartida, o tornam digno de devoção. Entretanto, estes relatos sempre esquecem que o caudilho é limitado por instituições e que as sociedades são plurais, por isso, quando um país “gira à esquerda”, as pessoas de direita não se dissolvem magicamente, mas resistem.

A cobertura das últimas eleições colombianas é um bom exemplo dessas construções. O relato hegemônico estava centrado em mostrar que Petro tornaria possível, finalmente, a utopia do giro à esquerda no país, ignorando tanto a estagnação de sua candidatura nas pesquisas quanto os gritos de uma sociedade polarizada e tão desencantada que chegou ao ponto de votar contra o processo de paz.

Como os problemas da região são tão grandes e complexos, e as expectativas de uma solução imediata são tão elevadas, o ciclo quase sempre termina em decepção: nem os caudilhos têm superpoderes, nem a utopia triunfa sobre a realidade teimosa. Aconteceu com Castillo no Peru e suas leis conservadoras e moralistas, como se alguma vez tivesse ocultado sua visão de mundo; está acontecendo com Boric no Chile, que carece do apoio de um parlamento bastante conservador ou AMLO no México com o 4T, que não foi capaz de mudar as condições de exploração trabalhista ou aumentar significativamente o pagamento de impostos dos mais ricos, dos mais baixos, em um dos países mais desiguais do planeta.

Quando chegam as críticas, falta a autocrítica, os analistas deveriam ser conscientes de sua responsabilidade na geração de decepções por inflar as expectativas sobre a magnitude e a velocidade dos processos de mudança; porque, no final das contas, as fadas não existem.

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Cientista político. Diretor do Instituto de Iberoamérica da Universidade de Salamanca. Professor de Ciência Política com especialidade em política comparada na América Latina. Doutor e Mestre em Estudos Latino-Americanos pela Universidade de Salamanca.

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