No domingo, 16 de novembro, o Equador realizou uma consulta popular e um referendo constitucional. Foi a sétima votação em apenas dois anos, mas não uma votação qualquer. No país atualmente governado por Daniel Noboa, o pacote de reformas submetido à decisão popular implicava um giro de 180 graus: convocar uma Assembleia Constituinte para redigir uma nova Constituição, permitir a instalação de bases militares estrangeiras, reduzir o número de parlamentares e eliminar o financiamento público aos partidos políticos. Nas quatro perguntas, o “Não” venceu de forma contundente, com percentuais entre 53% e 61%. As iniciativas mais rejeitadas foram a substituição da Constituição vigente e a possibilidade de instalar bases militares estrangeiras. Mas, além dos números, o que revela essa vitória expressiva do “Não”?
Em um país considerado um oásis de paz até 5 anos atrás, mas que hoje se tornou o mais violento da região, a vitória do “Não” no referendo e na consulta popular surpreendeu aqueles que liam a conjuntura equatoriana como um simples plebiscito sobre a popularidade de Daniel Noboa. O presidente ainda possui altos índices de aprovação, mas uma análise profunda dos dados de opinião pública, como a pesquisa nacional da IPSE Global realizada em outubro, revela que o resultado foi a crônica de uma derrota anunciada, o desfecho de uma tensão acumulada em um eleitorado dividido entre o temor ao crime e o medo de um poder sem limites.
Noboa chegou à presidência com um mandato claro: restaurar a ordem em um país assolado pelo narcotráfico. Ele declarou um “conflito armado interno” e aplicou uma política de “punho de ferro” com ampla militarização, o que ressoou com o clamor popular. Embora alguns avanços tenham sido alcançados, sobretudo na apreensão de drogas, o autoritarismo crescente e a estratégia de endurecimento do governo provocaram crescentes violações de direitos humanos e não foram capazes de resolver os problemas estruturais da população. Por isso, ainda que os equatorianos apoiem políticas de endurecimento, rejeitam a possível “bukelização” do país e, sobretudo, não estão dispostos a assinar um cheque em branco que entregue poder total ao presidente. A pesquisa revelou, por exemplo, que 61,5% da população geral já sente que o país é governado por meio de “decisões autoritárias que violam as leis”. Esse temor latente a uma forma de fazer política baseada no poder sem contrapesos foi o motor do “Não”.
O povo equatoriano, em um ato de sofisticação política, diferenciou a ação do governo da estrutura do poder. Deu a Noboa a espada para combater o crime, mas recusou entregar-lhe a caneta para reescrever as regras do jogo democrático.
A agenda virtual do governo versus a agenda real do cidadão
O governo Noboa cometeu um erro estratégico fundamental: mostrou-se excessivamente otimista e acreditou que sua agenda era a mesma da população. Apesar de contar com volumosos recursos públicos e amplo apoio midiático, apresentou uma estratégia de comunicação confusa e afirmou que apenas explicaria os detalhes de seu projeto constitucional após a eventual vitória. Entretanto, enquanto o presidente propunha um debate constitucional para redesenhar o marco político do país, a cidadania estava ancorada em preocupações muito mais imediatas.
A pesquisa da IPSE Global mostrou que 86,3% dos equatorianos sentem o impacto da alta do custo de vida, especialmente em alimentos e transporte. A economia, e não a arquitetura do Estado, era sua principal angústia.
Além disso, a campanha do “Sim” subestimou o apego à atual Constituição equatoriana, aprovada em 2008 com mais de 63% dos votos. A Constituição é garantista em matéria de direitos e representa um marco na agenda ambiental, sendo a primeira do mundo a incorporar os Direitos da Natureza. O apoio à Carta Magna atual é majoritário em diversos grupos, especialmente entre as mulheres. Com 70,1% de avaliação positiva entre o eleitorado feminino, elas se consolidaram como as grandes guardiãs da ordem institucional vigente. O “Não” teve rosto de mulher, defendendo direitos e um marco legal que sentem como próprio.
Até mesmo a base eleitoral do presidente não era monolítica. Nosso dado mais expressivo revela que quase metade de seus eleitores (48,1%) não tinha opinião negativa sobre a Constituição atual. Eles apoiavam o presidente, mas não necessariamente seu projeto de reforma total, demonstrando que lealdade ao líder não implica adesão cega a sua agenda. Além disso, embora no Equador se reconheça a importância da cooperação internacional para combater o crime organizado, os cidadãos entendem que há limites nesse processo e rejeitam majoritariamente a instalação de bases militares estrangeiras: o “Não” nessa pergunta alcançou 60,85% dos votos.
Governabilidade na corda bamba
Os resultados da votação deixam Noboa em uma posição de extrema vulnerabilidade no médio prazo. Sua legitimidade depende quase exclusivamente de seu sucesso no combate ao crime organizado. Mas trata-se de uma guerra de desgaste. Como mostra um recente relatório do Crisis Group, a violência no país continua elevada e se reconfigurou com o aumento de atos de extorsão e sequestro, ao passo que a fragmentação das grandes organizações criminosas gera novas e sangrentas disputas.
Se a percepção de segurança piorar, o capital político de Noboa evaporará. Sem a bandeira da segurança, e tendo fracassado em seu intento de acumular mais poder, seu governo corre o risco de se tornar uma administração sem propósito e sem instrumentos.
A vitória do “Não” fortaleceu uma oposição diversa e forneceu novas ferramentas aos poderes Legislativo e Judiciário para atuar como contrapeso firme. Qualquer tentativa de governar por decreto ou de ultrapassar os limites institucionais — caminho de alto risco, semelhante às crises políticas vistas em países como o Peru — pode acionar a desconfiança da maioria da população equatoriana e precipitar uma crise de governabilidade.
Apesar das múltiplas crises que o país atravessa, a vitória do “Não” deixou claro que ideias e valores como democracia, soberania, direitos humanos e meio ambiente seguem sendo centrais para os equatorianos. Eles exigem um governo eficaz — para além das promessas — capaz de enfrentar seus problemas cotidianos.
A crise de segurança exige não apenas combate ao crime organizado, mas também reformas estruturais no sistema de justiça, no sistema prisional, nas políticas sociais, na cooperação internacional, no controle de armas e nas redes de financiamento do crime. Simultaneamente, desafios como pobreza, desemprego e o deterioro dos serviços de saúde e educação não podem continuar relegados.











