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Ferido à bala: o Brasil é posto em xeque pelo obscurantismo

A direita moderada foi enterrada, como disse a jornalista Andrea Sadi da Globonews. No Senado foram disputadas 1/3 das vagas e quem mais perdeu assentos foram partidos de centro como PSDB, PROS, PSD e MDB. O bolsonarismo cresceu tanto no Senado que, segundo um levantamento da Revista Piauí, agora já tem os números necessários para votar processos de impeachment de ministros do STF. De fato, dos 20 candidatos ao Senado apoiados por Bolsonaro, 14 foram eleitos. Dos 27 apoiados pelo Lula, embora não sempre de forma tão explícita, apenas 8 conseguiram assentos.

O bolsonarismo se reforçou ainda mais no Congresso em relação a 2018, tendo obtido 99 cadeiras e conseguindo a maior bancada da casa. Entre os nomes mais conhecidos, foram eleitos perseguidores da esquerda via lawfare, parlamentares e ex-ministros do governo Bolsonaro com posturas abertamente fundamentalistas religiosas, contra os direitos humanos, antidemocráticas e negacionistas sobre ciência, pandemia e mudanças climáticas.

As campanhas presidenciais foram pautadas principalmente no antibolsonarismo e no antipetismo. Como ficou claro pelos debates presidenciais na TV, não houve confronto de ideias e programas que colocassem ao centro os problemas reais dos brasileiros, como se pedissem um cheque em branco até o final da eleição. Assim, os relatos dos candidatos ficaram abstratos e sugerem, por exemplo, que o problema da fome se resolveria elegendo Lula, em lugar de falar sobre como refazer concretamente o que se fez no auge do Programa Fome Zero de seu governo. Para outros, a corrupção se resolveria votando em Bolsonaro ou em Ciro Gomes (PDT), em lugar de debater sobre como fortalecer os mecanismos de controle e transparência que propiciaram, entre outras coisas, que jornalistas e o Ministério Público conseguissem descobrir problemas nas contas públicas e na atuação de governos nos últimos anos.

A esquerda parece ter esquecido a prática básica de apontar os problemas da classe trabalhadora e suas soluções e meios para operá-las. Uma eleição pautada quase que exclusivamente na aniquilação política do adversário, emburrece a população e a aliena de sua realidade, fortalecendo ainda mais tudo o que está por trás da lógica bolsonarista. Nessa linha, o estilo de campanha corrosivo usado pelo Ciro só amplificou essa tendência, provocando o pior desempenho de todas as eleições disputadas por ele até o presente (3,04%), muito provavelmente pelo voto útil à direita de seus eleitores e pela rejeição à esquerda que ele causou.

O bolsonarismo obscurantista se fortaleceu no primeiro turno, tanto no Senado quanto no Congresso, pois sem o debate de problemas reais, ideias e soluções para o Brasil, a lógica de oposição a figuras e partidos específicos premia líderes de subculturas que despertam paixões viscerais nos eleitores. Por outro lado, a federação PT, PCdoB e PV também conseguiu um ótimo resultado, com 80 assentos, 12 a mais do que a bancada atual. A bancada da federação do PSOL e da Rede Sustentabilidade também cresceu, obtendo 14 deputados, 4 a mais da atual. Os mais votados tanto da direita quando da esquerda foram os que mais radicalizaram o próprio discurso, sem medo de perder eleitores. Com radicalização do discurso se entende os que consolidaram um público amplo apontando com mais clareza quem são os inimigos e os aliados do povo brasileiro, quais problemas são dignos de atenção e quais soluções são as mais indicadas.

Mas a mera fama e a influência nas mídias digitais não bastam para explicar o resultado desse primeiro turno. Candidatos como atores, cantores de sucesso e influenciadores digitais não conseguiram ser eleitos. Personagens de segundo plano da política tiveram resultados melhores que as celebridades. Nem a mobilização em massa de famosos deu ao Lula a força necessária para vencer Bolsonaro no plano das ideias e derrota-lo já primeiro turno, embora isso não tenha acontecido por apenas 1,57 pontos percentuais. Em estados como São Paulo e Rio de Janeiro, dois dos três maiores colégios eleitorais do país onde o bolsonarismo tem mais força, a participação das celebridades nas campanhas da esquerda também não surtiu o efeito esperado. Em ambos os estados, celebridades candidatas não foram eleitas e as pesquisas não previram a força da direita nas urnas.

Embora a pouca efetividade da participação das celebridades tenha ocorrido também em outros estados, afetando o desempenho de candidatos ao Senado, Congresso, assembleias legislativas e governos estaduais, a nacionalização das campanhas estaduais, bem como uma campanha baseada só na necessidade de aniquilar política do outro, também gerou um enquadramento da realidade que terminou limitando o crescimento de muitas candidaturas de esquerda e de centro.

Em São Paulo, por exemplo, haverá segundo turno. O candidato de Bolsonaro, Tarcísio de Freitas (Republicanos), ficou inesperadamente em primeiro lugar com 42,32% dos votos, contra 35,70% de Fernando Haddad (PT). Tarcísio sequer tem carreira política em São Paulo. Ele é do Rio de Janeiro e mudou de estado apenas para disputar o governo. Tendo feito a sua mudança de domicílio eleitoral recentemente, em uma entrevista à Rede Vanguardia, Tarcísio não soube responder em que local e bairro de São Paulo está cadastrado para votar.

No Rio de Janeiro Cláudio Castro (PL) venceu no primeiro turno contra Marcelo Freixo (PSB) com 58,67% contra 27,38% dos votos. No estado, uno dos eventos de campanha de Marcelo Freixo sem a presença de Lula com maior potencial mediático, teve pouco público, embora contasse com a presença de artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Fábio Porchat, Gregório Duvivier, entre outros. No mapa dos votos de Freixo no Rio de Janeiro, o candidato foi amplamente votado apenas na capital, mostra de que nem os influenciadores que apoiavam a campanha conseguiram dar capilaridade e alcance às ideias do candidato em outras regiões do estado. Mesmo o adversário de Freixo sendo o atual governador do estado, envolvido em diversos escândalos de desvio de verba pública, corrupção e com cinco de seus secretários presos, perdeu no primeiro turno para ele.

Em boa parte dos estados, a campanha nacional parasitou as campanhas estaduais, nacionalizando um debate que deveria ter ficado no âmbito local. Tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo, por exemplo, os candidatos Freixo e Haddad deram centralidade demais ao antibolsonarismo em suas campanhas, especialmente em dois estados onde os apoiadores do presidente são tão numerosos. Isso terminou prejudicando as suas respectivas campanhas ao reativar um enquadramento antipetista de 2018 que era melhor ter deixado adormecido. Por outro lado, ao nacionalizarem a campanha estadual, especialmente no Rio de Janeiro, a campanha local se viu desidratada. Do ponto de vista da economia da atenção, os próprios candidatos da esquerda sugeriram implicitamente aos eleitores que o terreno de luta mais importante era o nacional, o que fez convergir as ações espontâneas nas mídias sociais quase que exclusivamente ao embate Lula VS Bolsonaro. Eles mesmos foram os responsáveis por ter drenado a energia da militância do debate estadual, direcionando-a majoritariamente ao debate nacional. Com isso, as campanhas estaduais se tornaram abstratas, pouco inteligíveis e perderam alcance e capilaridade no território, não conseguindo fazer as pessoas sentirem a importância do voto à esquerda em seus estados.

Embora seja muito maior o desafio de Bolsonaro para uma menos provável vitória no segundo turno, Lula ainda enfrenta alguns obstáculos estaduais, especialmente onde os palanques de seus aliados foram eliminados.

Autor

Pesquisador em opinião pública, enquadramento discursivo nas mídias e ciências sociais computacionais. Membro do Grupo de Pesquisa em Comunicação, Internet e Política da PUC-Rio.

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