A sujeição à norma no sentido estrito tem sido uma tarefa pendente na Bolívia desde a sua independência. A Bolívia ocupa a tristíssima 130ª posição no índice global de Estado de Direito. The Economist cataloga sistematicamente a Bolívia como um regime híbrido no índice da democracia, ou seja, não é uma democracia. Aparentemente, o desenvolvimento do país em termos de respeito aos direitos humanos, independência judicial, luta contra a corrupção, respeito à oposição e liberdade de imprensa, entre outros, é tão notável quanto seu desempenho futebolístico.
Poucas coisas se mantiveram constantes no país dos movimentos sociais e das rupturas políticas, uma delas é o seu sistema de justiça, repleto de nomeações interinas, incerteza na nomeação de altos magistrados, as designações questionáveis de juízes e procuradores, e as deficiências do sistema penal boliviano. Mudando duas ou três linhas, o relatório da CIDH de 2009 poderia perfeitamente descrever a situação atual do país em 2023. A saber, o processo de seleção de magistrados para os tribunais superiores de justiça está, como sempre, envolto numa incerteza preocupante à qual a população já é indiferente.
Depois de ter sido convocado para 27 de março de 2023, o processo de seleção dos magistrados foi anulado por em duas ocasiões, com acusações de parcialidade, por ações constitucionais que, casualmente, pararam nas mãos de magistrados que buscam postular-se a distintos tribunais (uma estratégia para burlar a proibição de repostulação), deixando evidente uma espécie de negociata judicial. Em 18 de maio, a Câmara dos Deputados decretou uma quarta interrupção do debate para retomar o processo de seleção de magistrados, depois de semanas de paralisação porque o seu primeiro vice-presidente tinha ordenado preparar o jantar… voltou a reunir-se em 24 de maio, aprovando uma lei para reduzir prazos, mas a continuidade do processo depende do Tribunal Constitucional.
Algo parecido aconteceu em 2022 com a seleção do Defensor do Povo. Não houve acordo para uma convocatória transparente e a maioria da base governamental se impôs em 18 de março de 2022. A base do governo e a oposição procrastinaram até à exaustão a nomeação do novo defensor. Parecia que o partido no poder não teria a capacidade de impor um candidato ao não dispor de dois terços dos votos da câmara e forçaria um consenso. No entanto, em 23 de setembro de 2022, o partido no poder conseguiu finalmente nomear o seu candidato, aproveitando a ausência em massa da oposição, que estava celebrando as festas de Santa Cruz.
No entanto, o mais preocupante do processo de seleção do Defensor do Povo não foi o resultado, mas o caminho. Entre uma coisa e outra, uma Câmara Constitucional concedeu ao Presidente do Estado o poder de passar por cima da Assembleia Legislativa, na falta de consenso, e nomear o defensor por Decreto Presidencial. Embora tal não tenha acontecido, os fundamentos expostos na sentença poderiam ser usados para a designação de outras autoridades, como o controlador ou mesmo os altos magistrados.
Isto faz parte de uma jurisprudência constitucional ao serviço do poder de turno. Não basta recordar a Sentença 0084/2017, que possibilitou a reeleição indefinida de todas as autoridades eleitas pelo povo, incluindo a do Presidente Evo Morales, violando o expressado na Constituição. Embora a Corte IDH tenha condenado a reeleição indefinida em sua Opinião Consultiva OC-28/21, o Tribunal Constitucional não se pronunciou a respeito, mantendo vigente a reeleição indefinida dentro da jurisprudência.
O Estado de Direito é profundamente afetado pela falta de independência, instrumentalização, ausência de um processo devido, uso abusivo de prisão preventiva e obstáculos ao acesso à justiça. A Bolívia preenche todos estes requisitos desde a formação de seus fracos tribunais em democracia, embora com alguns momentos célebres em que a pressão popular foi a carta vencedora (o julgamento de García Meza e a devolução do assento de deputado ao Evo Morales).
A avaliação geral é, no entanto, negativa. O Relatório 2021-GIEI adverte que é necessário implementar reformas profundas no sistema judicial. A Bolívia tem uma população carcerária três vezes superior à capacidade das suas infraestruturas, com mais de 70% de presos sem sentença. Isso é consequência da falta de independência dos juízes e procuradores, bem como da utilização política do sistema judicial.
O problema básico parece ser a importação de um sistema de pesos e contrapesos que não se adequou às características próprias da América Latina. Reflexões como o “pesadelo” de Linz ou o “desastre” de Ackerman, bem como a adição de um Poder Eleitoral que não se concretizou, previam o caos de um sistema que carece de capacidade para controlar o poder, no qual quase tudo tende a um autoritarismo descafeinado. Ministros e outras altas autoridades são investigados e presos por corrupção, advogados e outras autoridades “caem” de prédios de mais de dez andares e o narcotráfico é desenfreado.
As ameaças do executivo também são preocupantes. O ministro da justiça ameaça juízes, promotores e políticos com processos e condena a torto e a direito. Até agora, em 2023, já ameaçou o líder da oposição, Carlos Mesa, de que terá de responder perante à justiça e também sugeriu ao Tribunal Constitucional a demissão de dois de seus magistrados. O ministro do governo não perde a oportunidade de expor publicamente quem foi preso, apesar de ter sido repreendido pela HRW por violar a presunção de inocência. Talvez eles devessem ser reconhecidos por sua honestidade em tornar público o jogo de extorsão e ameaças que sempre foi feito em segredo?
O desânimo generalizado da população não mostra um futuro promissor na Bolívia. As eleições judiciais não parecem estar indo bem. Não só o atraso do Legislativo, mas também o bombardeio do Tribunal Constitucional levantam temores de nomeações de magistrados por Decreto Presidencial. O mais triste do caso é que o possível resultado de um Executivo todo-poderoso é tão grave que inclusive as cotas legislativas de juízes e a continuação de graves violações de direitos humanos parecem não ser o pior destino.
Autor
Doutora em Estado de Direito e Governança Global pela Univ. de Salamanca e em Ciências Jurídicas pela Pontificia Univ. Javeriana (Colombia). Pesquisadora convidada do Instituto Nórdico de Estudos Latinoamericanos, Univ. de Estocolmo.