Tem algo estranho acontecendo nos meandros da política externa brasileira. Um sentimento de que, a despeito das altas expectativas com o avanço de pautas de gênero, alguns debates simplesmente não decolam ou são apagados por falta de força política. Isso tem acontecido, por exemplo, com a agenda Mulheres, Paz e Segurança do Conselho de Segurança das Nações Unidas. É curioso que grande parte da população brasileira, incluindo atores governamentais e da sociedade civil, desconheça completamente o que é, para que serve e a importância e qualidade desta agenda.
Para quem não sabe do que se trata, a agenda Mulheres Paz e Segurança (MPS) destaca a importância de incluir mulheres em espaços que, por muito tempo, foram dominados por homens, como a resolução de conflitos e a construção da paz. A Resolução 1325 (2000) foi a primeira a reforçar a necessidade de um papel ativo às mulheres, bem como a promover ações de prevenção e proteção contra violências, e defender a inclusão de perspectivas de gênero nas políticas de desarmamento e segurança. Os Estados podem e devem elaborar políticas nacionais para traduzir essas metas para suas realidades locais.
O Brasil lançou seu primeiro Plano Nacional de Ação (PNA) sobre Mulheres, Paz e Segurança em 2017, com avanços limitados. Em 2023, iniciou-se o processo do segundo PNA, mais ambicioso, apresentado como “Etapa I” durante a presidência brasileira no Conselho de Segurança. Porém, faltam detalhes sobre quem são os responsáveis, prazos, participação civil e orçamento neste documento. Não parece exagero afirmar que estamos diante da ausência de objetivos claros, transparência, prestação de contas, envolvimento da sociedade civil e da academia, além de outros organismos internacionais, que estiveram presentes desde a elaboração do primeiro PNA.
É intrigante que esses processos passem despercebidos por políticos e sociedade, especialmente considerando os recentes esforços do governo Lula em medidas relacionadas à agenda MPS e aos PNAs. Em setembro, Lula aprovou o alistamento militar feminino voluntário, impactando a representatividade nas Forças Armadas. Porém, essa medida inédita foi apresentada sem conexão com a agenda MPS e os planos existentes, mostrando desconexão entre ação governamental e políticas estabelecidas. O silêncio sobre a agenda MPS no Brasil é tão ensurdecedor que, em maio, o Comitê da CEDAW expressou preocupação com a falta de avanços com o segundo PNA, principalmente diante do contexto de conflitos de terra e crise ambiental, temas debatidos nesta agenda.
O engajamento com a agenda MPS e a elaboração de PNAs oferecem oportunidades significativas para o Brasil no cenário internacional, especialmente durante sua presidência na Comissão para Consolidação da Paz das Nações Unidas (PBC). Contudo, desde que assumiu o posto, o país perdeu boas oportunidades de relacionar seus esforços com os PNAs publicados. Hoje, 108 dos Estados membros da ONU adotaram PNAs e reconhecem sua importância para estabilidade, segurança e prosperidade. Essa tendência crescente sugere um compromisso duradouro, não um modismo. Se o Brasil pretende reafirmar seu compromisso com a igualdade de gênero como elemento crucial para a paz, tanto internacional quanto nacionalmente, por que há tão pouca informação sobre suas ações neste campo?
Duas perdas são previsíveis se o país continuar negligenciando a agenda MPS: primeiro, a fragilização do processo iniciado com o primeiro PNA. Os obstáculos para produzir um segundo documento, mais amplo e coerente com as necessidades brasileiras, indicam falta de força política para uma agenda que aborda temas cruciais como gênero, raça, insegurança e mudanças climáticas. Segundo, há impacto na imagem que o Brasil projeta na região e internacionalmente. Essas falhas comprometem o posicionamento do país em questões fundamentais para o governo atual.
A urgência de abordar questões como violência sexual, refugiados, indígenas, tráfico humano, mudanças climáticas e pandemias tem levado países como Alemanha, Canadá, Guatemala, Reino Unido, Uruguai e El Salvador a adotarem PNAs com medidas específicas. Essas decisões refletem compromissos públicos para repensar processos internacionais com perspectivas de gênero interseccionais e inclusivas. O Brasil, porém, mantém-se em papel secundário nesses debates, apesar da gravidade da situação das mulheres no país e da expectativa por maior protagonismo brasileiro. Essa postura contradiz a realidade nacional e as expectativas internacionais quanto à liderança do Brasil nessas questões cruciais.
Os números não mentem. Somos o quinto país que mais comete feminicídios no mundo. Dados do Instituto Igarapé mostram que entre 2000 e 2020, houve um aumento de 167% nos números de feminicídio de mulheres indígenas . Também ganhamos destaque como o segundo país que mais comete assassinatos a defensores de direitos humanos. Além disso, 51% das defensoras residentes na Amazônia afirmaram ter sofrido violência em uma pesquisa realizada pelo Instituto Igarapé. Isso não é de se surpreender. Afinal, apenas em 2023, 2.203 conflitos agrários foram identificados pela Comissão Pastoral da Terra no país.
Justamente quando deveríamos estar discutindo ativamente, em meios acadêmicos e políticos, como usar um segundo PNA para combater essas múltiplas violências, parece-nos que os processos burocráticos são inúmeros, tanto que os passos em direção à sua publicação e implementação são poucos e lentos. É importante saber que os PNAs não substituem outras políticas nacionais. Enquanto ferramentas de planejamento estratégico, eles oferecem aos Estados a possibilidade de coordenar atividades e acompanhar os resultados de implementação de modo coerente e coeso.
O contexto atual é propício para o Brasil demonstrar entendimento e contribuir para o avanço da agenda MPS. Com seu reconhecido desempenho em fóruns multilaterais, o país pode reforçar sua liderança através de um segundo PNA inovador, servindo de modelo em fóruns regionais e globais. É uma oportunidade de mostrar que, apesar dos dados alarmantes, há interesse e motivação política para decisões que encaminhem o país rumo a uma discussão de gênero mais inclusiva. Este momento permite ao Brasil reafirmar seu compromisso e liderança em questões de gênero e segurança internacional.
Autor
Doutora em Relações Internacionais pelo IRI-USP e professora dos cursos de Relações Internacionais da ESPM-SP e do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. Coordenadora de Pesquisa do Observatório de Política Externa Feminista Inclusiva (OPEFI).
Professora da Elliott School of International Affairs na George Washington University e Lead Associate na Gender Associations.
Professora do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio e Pesquisadora do Global South Unit for Mediation (GSUM). Coordenadora de Pesquisa do Observatório de Política Externa Feminista Inclusiva (OPEFI).