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Chile: tragédia anunciada ou evitável?

Co-autor Alexis Cortés

Com maior ou menor perplexidade, acompanhamos nas últimas semanas o avanço da candidatura de extrema-direita de José Antonio Kast à presidência do Chile. Sua acelerada ascensão culminou na passagem em primeiro lugar (ainda que por uma pequena margem de 2 pontos porcentuais) ao segundo turno, acompanhado do candidato de esquerda e ex-liderança do movimento estudantil de 2011, Gabriel Boric.

Por que uma sociedade que há apenas 2 anos protagonizou o estallido social, uma das maiores mobilizações sociais da sua história, colocando em xeque o governo do direitista Sebastián Piñera, hoje se inclina como primeira opção por um candidato da extrema-direita? O principal resultado do estallido foi a aprovação por 80% do eleitorado de um inédito processo constituinte paritário que está deixando para trás o último enclave institucional da ditadura: a constituição de Pinochet. Por que então a primeira opção de triunfo presidencial está num candidato que encabeçou a rejeição contra a Nova Constituição?

Aparentemente, a fadiga por saturação com as incertezas acumuladas pela crise política, econômica, migratória (no norte do país) e sanitária criaram um cenário propício para uma candidatura que ofereceu ordem e mão firme. Além do mais, Kast conseguiu mobilizar um eleitorado de direita que estava crescentemente se abstendo, pois ficou desnorteado e sem confiança ante os negativos resultados do setor nas últimas três eleições.

Diversas análises coincidem em assinalar que o Chile está vivendo uma bolsonarização política que, apesar de surpreendente, posiciona o país andino numa tendência cada vez mais global. Qual é o nível de proximidade entre Kast e Jair Bolsonaro? E o que deveria acontecer para que não se repita o cenário que permitiu o triunfo do ex-capitão no Brasil?

Bolsonaro e Kast: irmãos siameses?

Kast representaria mais um elemento de uma onda de direita na região, da qual o principal representante é Bolsonaro. Efetivamente, muitas de suas posições se assemelham. Para começar, ambos são defensores do legado ditatorial da região, em especial da herança de Pinochet. Defendem posições religiosas moralistas, a “mão dura contra a delinquência” e o punitivismo. Na política interna, enfatizam um vago “anticomunismo” combinado com receitas neoliberais. Externamente, simpatizam com Donald Trump e o neoconservadorismo, e agitam os mesmos espantalhos: Cuba, Venezuela e Nicarágua.

No entanto, há pequenas diferenças. Bolsonaro se associa mais abertamente a setores criminosos milicianos. Kast enfatiza o “imigrante ilegal” a propósito da crise migratória e humanitária que experimenta o Chile na sua fronteira norte. Pessoalmente, Kast parece mais articulado e equilibrado que Bolsonaro, tanto é que parte de sua ascensão se explica por suas boas performances nos debates com outros candidatos, espaços nos quais Bolsonaro não pôde estar presente ou diretamente evitou.   

A grande diferença é o momento que vive cada país. São duas “reações”, mas que se processaram de forma diferente. Bolsonaro é resultado de uma onda conservadora que começou em 2013, do esgotamento de governos de centro-esquerda, de intensas campanhas midiáticas e de lawfare, de um golpe institucional em 2016 (que derrubou Dilma Rousseff) e da prisão do principal favorito nas eleições de 2018 (Luiz Inácio Lula da Silva). Kast parece ser a rápida e estruturada reação de uma parte considerável da sociedade chilena que se calou desde 2019, que se aterrorizou com o estallido ou pelo menos considera que já é tempo de pôr ordem na casa.

Outra grande diferença é que enquanto Bolsonaro sempre transitou no baixo clero e se apresentou como outsider político, Kast provém de um clã político-empresarial com fortes redes nos partidos de direita. Tanto a ala intimamente associada à ditadura (é irmão mais novo de um dos personagens chave das reformas estruturais de Pinochet), como a nova direita liberal (encabeçada por seu primo, o senador Felipe Kast), rapidamente manifestaram seu apoio no segundo turno.

É possível o déjà vu? Chaves do segundo turno

Até que ponto se poderia repetir no Chile um cenário como o que levou ao triunfo de Bolsonaro? O enredo da eleição brasileira esteve marcado pelo eixo corrupção/anticorrupção, reproduzido na identificação PT/anti-PT. Nesse marco, as chaves antifascista, antiautoritária, antipatriarcal tiveram pouquíssima capacidade de mobilizar os eleitores em disputa no Brasil. No caso do Chile, Kast aposta em emoldurar a eleição como a disputa liberdade versus comunismo, algo que ecoa parcialmente a estratégia bolsonarista.

Porém, é mais provável que prevaleça o eixo ditadura/democracia, pois foi essa a clivagem que pautou a democratização chilena e a direita só conseguiu quebrá-la com a figura de Sebastián Piñera que, diferente dos partidos conservadores que o apoiam, nunca se identificou com a ditadura. A memória chilena dos crimes de Pinochet contra parte importante da população está mais fresca que no Brasil, ainda mais depois das graves violações aos direitos humanos cometidas durante o estallido social.

Apesar do crescimento do setor político de Boric ter se baseado na crítica aos governos de centro-esquerda, seria impensável que suas principais figuras, como Ricardo Lagos, Michelle Bachelet ou a família Frei (da Democracia Cristã), ficassem neutros ante a possibilidade de que uma candidatura claramente pinochetista chegasse a La Moneda. Todos os partidos da centro-esquerda e do centro já se posicionaram a favor de Boric, reforçando a ideia de defesa da democracia.

É provável que a estratégia de Boric se sustente também nos resultados do plebiscito constitucional: os que apoiaram a Nova Constituição (80%) versus os que a rejeitaram para manter a Carta Magna de Pinochet (20%). Embora o apoio à Convenção Constitucional esteja diminuindo, a maioria da população é otimista sobre a Nova Constituição. Os chilenos vão arriscar todo o processo constituinte elegendo um Presidente que já prometeu fazê-lo naufragar?

Se Boric for bem-sucedido em mostrar Kast como o candidato que promete voltar ao pior do passado, e se posicionar ele próprio como o candidato do Chile do futuro, com Nova Constituição e com mudanças responsáveis, o mais provável é que o país andino não repita o destino do Brasil. Não há dúvidas de que em boa medida o destino da região se jogará no Chile daqui até o dia 19 de dezembro. Aos defensores da democracia e da justiça, caberá unir forças em torno da candidatura de Boric e da defesa do processo constituinte.

Alexis Cortés é Doutor em Sociologia pelo IESP-UERJ (Brasil), professor da Universidad Alberto Hurtado (Chile).

Autor

Professor de Ciência Política da Univ. Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Vice-diretor de Wirapuru, Revista Latinoamericana de Estudo das Idéias. Pós-Doutorado no Instituto de Estudos Avançados da Univ. de Santiago de Chile.

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