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Combater a desigualdade para defender a democracia

Estamos diante de uma espécie de vulgarização da lógica meritocrática que, como aponta Michael Sandel, é, por si só, um problema para alcançar uma convivência coletiva que aprimore a virtude cívica.

A narrativa de que a polarização social se deve ao populismo e ao extremismo político é falsa, conceitual e factual, e tende a invisibilizar as causas subjacentes ao mal-estar e à incerteza que marcam nosso momento histórico: a crescente desigualdade. É isso que realmente polariza nossas sociedades. A concepção liberal-conservadora, predominante no ecossistema midiático da maioria dos nossos países, converteu a ideia de que o populismo é a grande ameaça às democracias em senso comum, que é simplesmente assim e não deve ser questionado.

Desse ponto de vista ou posicionamento ideológico, os problemas provêm de políticos “populistas” que, em busca de popularidade, prometem coisas irrealizáveis. Mas essa perspectiva tem duas inconsistências graves. A primeira é que tende a exonerar as elites econômicas da região que, em muitos casos, exercem o poder real através de mecanismos de dominação, como a captura da política via financiamento de candidatos e partidos, o controle de instrumentos de dominação/coerção econômica, como finanças, e a propriedade dos principais meios de comunicação.

Toda sociedade é estruturada a partir de relações de poder. E os três poderes fundamentais são o poder político (instituições que gozam de legitimidade burocrático-legal e tradicional nos termos de Max Weber), o poder econômico (propriedade dos principais meios de produção de riqueza) e o poder ideológico (a estrutura que detém a mídia de alcance nacional).

Mas a narrativa liberal-conservadora oculta essas relações de poder que, em um sentido republicano, deveriam ser discutidas diariamente. Portanto, deve-se apontar, quando apropriado, criticar esses poderes para revelá-los e submetê-los à deliberação pública com relação às consequências coletivas de suas ações e decisões.

A segunda inconsistência da falsa consciência que atribui nossos problemas ao “populismo” é que incentiva a lógica antipolítica. Ao colocar a política como origem dos problemas coletivos, a opõe à cidadania e aos âmbitos privados que seriam espaços de virtude. Daí a simplificação cada vez mais comum do debate público que, especialmente nas conversas digitais, banaliza o debate a ponto de normalizar ideias como a eliminação da política para evitar a corrupção e, assim, alcançar o bem-estar tantas vezes prometido.

Esse tipo de concepção tende a alimentar sentimentos antidemocráticos, pois sem política não há democracia possível. A política, em seu sentido profundo e clássico, implica a ação coletiva com a qual, segundo Hannah Arendt, agimos entre muitos. Isso, por sua vez, refere-se à virtude cívica e ao caráter republicano que se requer para que a política seja operativa; ou seja, para que sejam definidos os espaços comuns onde ela pode ser realizada.

A antipolítica subverte esse processo e se torna um terreno fértil para alternativas de ultradireita e antidemocráticas. É evidente que onde essa lógica antipolítica se instala, crescem as opções políticas antidemocráticas. Veja os casos de Argentina, Brasil, El Salvador e Equador.

Desigualdade na região

Nossa região vive hoje sob níveis de desigualdade sem precedentes, segundo o recente relatório da Oxfam, EconoNuestra, para a América Latina e o Caribe. Isso rompe com o fundamento da democracia, que é a existência de um marco de igualdade (formal no liberalismo e substancial no sentido republicano) entre quem constitui uma comunidade política.

Atualmente, na América Latina e no Caribe, os equilíbrios que sustentam a democracia foram rompidos como produto da crescente desigualdade. Essa é, então, a principal ameaça às nossas democracias. Especialmente se considerarmos a penetração em nossos países do consenso ideológico (inicialmente neoliberal e, ultimamente, liberal-libertário) que naturaliza tais níveis de desigualdade como consequência da “liberdade econômica”.

Esse discurso apresenta a desigualdade como um fenômeno favorável, com base na ideia de que o progresso individual depende apenas do esforço pessoal e que a política nada mais é do que um âmbito corrupto e “empobrecedor”. Essa narrativa busca estabelecer que as pessoas mais capazes são as que se tornam bilionárias. Estamos, portanto, diante de uma espécie de vulgarização da lógica meritocrática que, como aponta Michael Sandel, é, por si só, um problema para alcançar uma convivência coletiva que aprimore a virtude cívica.

Por outro lado, segundo o relatório da Oxfam, em 2015, 32 latino-americanos tinham a mesma riqueza que a metade mais pobre da região, enquanto hoje esse número foi reduzido a dois bilionários. O mesmo relatório levanta o problema da capacidade desses magnatas de cooptar a política com base no poder que sua riqueza lhes confere.

Uma elite latino-americana super-rica concentra um poder desproporcional, o que ameaça a democracia. E o problema não é que sejam ricos, a chave é que, sendo o econômico um dos três poderes que estruturam a sociedade, se os ricos são cada vez mais ricos, em um modelo capitalista que tende à concentração excessiva via financeirização, então praticamente todos os poderes estariam nas mãos dos mesmos setores (minúsculos e fechados).

Considerando que os meios de comunicação social, em quase todos os nossos países, são geralmente propriedade de grandes grupos econômicos e, como mostra a história, todo poder excessivo corrompe e distorce, enquanto aliena da realidade quem os possuem, devemos desenvolver mecanismos republicanos que limitem a concentração excessiva de riqueza porque isso implica a concentração excessiva de poder. Desta forma, poderia ser garantida uma melhor coexistência democrática baseada na virtude cívica, enquanto sociedades mais equilibradas permitiriam o pleno desenvolvimento dos nossos países.

Quando existem diferenças tão grandes, produto de desigualdades brutais como as que nossos países conhecem hoje, esvazia-se o espaço público entendido como a clássica res publica, com a qual não há virtude cívica nem possibilidade de fazer julgamentos coletivos sobre o que é comum a todos e todas. Deste modo, a discussão pública se esvazia de seu conteúdo especificamente político. E as pessoas perdem a capacidade de entender seus problemas como compartilhados com seus pares; o que limita, portanto, a capacidade de resolvê-los coletivamente.

Sem esta possibilidade de valorizar o público e defender o comum, não há democracia possível. Portanto, devemos combater decisivamente a desigualdade para defender a democracia.

Autor

Politólogo, conferencista e consultor eleitoral. Mestre em Ciência Política pela Universidade Complutense de Madrid. Licenciado em Ciências Políticas pela Universidade Interamericana de Porto Rico.

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