Em 15 de outubro, o Uruguai tornou-se o primeiro país da América Latina a aprovar uma lei de eutanásia por via parlamentar. Embora Equador e Colômbia já tivessem discriminalizado judicialmente o ato, o caso uruguaio foi apresentado como um símbolo de progresso. As manchetes falavam de “morte digna”, de um país moderno e liberal que amplia os direitos. Mas a letra da lei e seu alcance real contam outra história, que foge à narrativa oficial.
Enquanto a mídia celebra um novo direito, o texto legal introduz sérios retrocessos em termos de proteção à vida. O que foi apresentado como “avanço” pode, na realidade, ser uma restrição de direitos básicos. Não é necessário recorrer a interpretações filosóficas para perceber isso: basta ler dois artigos centrais da lei.
Um “direito” que se estende à deficiência e à velhice
O Artigo 2º estabelece que toda pessoa “maior de idade e mentalmente apta” que sofra de doença terminal ou de uma “condição de saúde incurável e irreversível” com sofrimento insuportável tem o direito à prática da eutanásia. Essa redação — aparentemente compassiva — abre uma ampla brecha: não se limita a pacientes terminais, mas inclui pessoas com doenças crônicas, deficiências ou mesmo o envelhecimento, que, segundo a OMS, também pode ser considerado uma condição irreversível.
Assim, alguém com deficiência ou doença degenerativa, que sente viver um “declínio progressivo na qualidade de vida”, poderia solicitar que sua morte fosse induzida. Em vez de reforçar a atenção e o apoio, o Estado lhe oferece uma via para deixar de existir. Cria-se uma distinção jurídica inédita: alguns são prevenidos de cometer suicídio, enquanto outros são auxiliados a realizá-lo. Não há forma mais clara de discriminação. E se disserem “não é o mesmo”, qual a diferença? O tipo de doença ou sofrimento? A idade ou a deficiência?
O Artigo 4º, que regulamenta o procedimento, também revela lacunas preocupantes. Estabelece que quem solicitar assistência para morrer deve fazê-lo por escrito, perante um médico. E, se não puder assinar, “outra pessoa maior de idade” poderá fazê-lo “a seu pedido”, em sua presença. Ou seja: alguém pode solicitar a eutanásia através de outro, sem supervisão psiquiátrica ou intervenção de um assistente social. Para decisões menos graves, o Estado exige um tabelião ou juiz. Para solicitar a indução da morte, basta uma assinatura.
Uma suposta liberdade sem garantias reais
Segundo o procedimento, o médico então “conversará com o paciente” e verificará se a vontade é “livre, séria e firme”. Mas que liberdade existe quando alguém sofre intensamente e não recebe cuidados paliativos adequados? Informar não é acompanhar, e oferecer a morte como única saída não garante liberdade, mas abandono. Uma pessoa abandonada à dor não escolhe: se rende. Nesse cenário, a eutanásia se torna uma resposta institucional à falha de um sistema de cuidados.
A lei uruguaia, longe de ser garantista, transforma o sofrimento em um critério jurídico para por fim à vida, sem oferecer apoio ou alternativas reais. A narrativa midiática — que repete que a lei é para “doentes terminais” e está repleta de controles — oculta essa contradição fundamental. Ademais, a comissão que avalia a eutanásia a faz após a morte, não antes. Se as coisas forem feitas incorretamente, a vida não pode ser devolvida.
Durante os anos de discussão parlamentar, nenhuma das objeções técnicas, éticas ou legais foi abordada. Os alertas de especialistas em Direito, Bioética, Psiquiatria e Medicina Paliativa foram ignorados. Não houve debate real, mas sim um evento encenado: fabricou-se uma narrativa e desconsiderou-se todas as críticas. Em nome da “autonomia pessoal”, aprovou-se um texto cheio de ambiguidades, que deixa quem mais precisam de apoio sem proteção.
Falsas suposições entre legisladores
Ao ouvir vários legisladores argumentarem ou jornalistas opinarem nos últimos dias, repetem-se frases como: “É compreensível que alguém em agonia queira antecipar a morte”; “Que não prolonguem a nossa vida nem o nosso sofrimento com suportes artificiais”. É como se não soubessem que já existe uma lei de vontades antecipadas desde 2009 e que todos concordamos que é um direito não prolongar nossa vida nem nosso sofrimento apenas por teimosia em nos manter vivos. A ética médica proíbe tanto a obstinação terapêutica quanto a eutanásia. Ou não se consegue compreender o texto ou não se consegue imaginar o tipo de paciente que está incluído no projeto. A legislação uruguaia já prevê uma morte digna, sem sofrimento, sem prolongar a vida inutilmente, nem provocar a morte (eutanásia).
Há cinco anos, vários profissionais de cuidados paliativos explicam repetidamente na mídia que a sedação paliativa não é uma forma disfarçada de eutanásia; ela não causa a morte. Isso não é uma opinião, é um fato científico. A sedação é uma prática ética e legal que não mata o paciente, mas sim reduz seu nível de consciência para aliviar sintomas difíceis de controlar. Alguns senadores repetiram esse mito como argumento: “A eutanásia já é praticada”. Isso é empiricamente falso e demonstrável. Mas a crença popular prevaleceu.
O novo hiperindividualismo moral e político
Costuma-se afirmar que se opor à eutanásia é “impor uma moral”. Mas não é também uma imposição considerar que uma vida doente ou dependente vale menos? Repete-se que “ninguém será obrigado”, “quem não quiser, não peça” e que “cada um pode escolher”. Mas, ao mesmo tempo, cria-se uma categoria de pessoas cuja vida deixa de ser igualmente protegida pela lei. Essa desigualdade jurídica é uma brecha ética, que já se naturalizou socialmente: há vidas que não valem a pena.
Paradoxalmente, em nome da liberdade, instala-se uma nova pressão social: nos países onde a eutanásia se naturalizou (Canadá, Bélgica e Holanda, por exemplo), quem decide continuar vivendo pode ser visto como egoísta ou um fardo para a sociedade. A suposta liberdade se transforma em dever de morrer.
O mais surpreendente é que essa lógica tenha sido promovida e votada por toda a esquerda uruguaia e alguns legisladores da direita (se é que ainda podemos usar esses termos). Estranhamente, a esquerda apela, nessa questão tão delicada, a um discurso libertário — “meu corpo, minha decisão” — esquecendo que o respeito pela dignidade humana exige cuidar, e não eliminar, quem sofre. Não se levam em conta as injustiças sociais que levam alguém a tomar decisões que não tomaria se tivesse outras opções. Assim, reconfigurou-se uma esquerda que fala de liberdade, mas sem pensar nas injustiças. E embora mais divididos nesse tema, os poucos legisladores que votaram pelos partidos tradicionais, ao invocarem a liberdade individual como argumento, traem o humanismo liberal que defende a igual dignidade de todas as pessoas, consagrada na Constituição. Em ambos os casos, a tradição humanista uruguaia de respeito e solidariedade é diluída em um emotivismo superficial que chama de “direito” o que na realidade é uma grave discriminação social e jurídica.
Crise do diálogo democrático
Apesar do que muitos supõem, as objeções mais fortes à lei não vieram de argumentos religiosos. Os crentes não apelaram à sua fé para participar do debate, mas sim às mesmas razões bioéticas e jurídicas que qualquer cidadão – crente ou não – pode compartilhar. No entanto, grande parte do discurso político e midiático precisou criar um inimigo conveniente, facil de derrotar simbolicamente: o “dogmatismo religioso”, que nada mais é do que uma falácia do espantalho. Como se defender o laicismo fosse promover a eutanásia. Mas isso evita discutir o cerne da questão e cria um conflito imaginário entre liberdade e religião, quando o que está em jogo não é a fé, mas a dignidade e a igualdade perante a lei.
O resultado de cinco anos de discussão sem alterações no texto da lei demonstra algo mais profundo: perdemos a capacidade de ouvir a razão. Hoje, não importa o que é dito, mas quem diz. No debate público, os rótulos têm mais peso do que os argumentos, e a desqualificação substitui o pensamento. Não há diálogo: há uma competição para impor narrativas.
É mais comodo para quem não quer pensar ou ouvir ideias que os desafiam desqualificar previamente o oponente, em vez de dedicar tempo a discutir seus argumentos.
A lei da eutanásia não apenas testa nossa concepção de vida e liberdade. Ela também revela uma crise cultural e política mais ampla. Quando a sociedade deixa de debater racionalmente e se permite ser guiada por emoções e preconceitos identitários, a democracia se esvazia de conteúdo. E se pensar diferente se tornar motivo de suspeita, não estaremos mais ampliando direitos: estaremos reduzindo o espaço para a razão compartilhada.
*Texto originalmente publicado em Diálogo Político

 
                                    

