Até 2019, Evo Morales só tinha inimigos à direita do espectro ideológico, os que combateu nas ruas e nas urnas, e a quem não reconhece legitimidade. Entretanto, desde 2019, surgiram adversários de sua própria base (MAS), adversários reconhecidos sim como legítimos por serem autoridades eleitas, como é o caso do vice-presidente, David Choquehuanca. A causa raiz deste cenário é seu interesse por voltar a se candidatar à presidência em 2025. Por isto, Morales está constantemente lidando com adversários internos, ou renovadores, e externos, ou inimigos da direita, tendo o narcotráfico como pano de fundo em sua agenda discursiva.
Adversários internos: os renovadores
Durante muitos anos, Evo Morales e David Choquehuanca compartilharam um espaço simbólico comum constituído entre o partido político (MAS), o Estado e as organizações sociais. Entretanto, segundo relatos não oficiais, os atritos entre ambas lideranças têm sido mais evidentes – para a opinião pública – desde que Morales retornou à Bolívia em novembro de 2020, logo depois que o MAS ganhou novamente as eleições gerais com Luis Arce.
David Choquehuanca tem apoio em divversos lugares da Bolívia, como La Paz (um reduto natural), El Alto, norte de Potosí, e em várias regiões de Santa Cruz, Beni e Pando. Enquanto isso, Evo continua a ter controle total sobre sua base social histórica: o Chapare (Cochababamba).
O impulso que Choquehuanca outorga às escolas de líderes em diferentes lugares do país, sob a égide do discurso da renovação, é o que incomoda Evo e sua facção no MAS. Nas palavras do vice-presidente, “O mundo tem que se renovar. Há uma desordem global. Há incerteza, há caos. Necessitamos de mudanças, de uma revolução de ideias. E quem devem ser os protagonistas? Os jovens, são eles que têm que despertar sua criatividade e não esperar que as pessoas mais velhas lhes digam o que têm que fazer”. Para Evo Morales, por outro lado, os renovadores são a nova “degeneração que trabalha para um novo projeto político”.
Diante destas diferenças, nos últimos meses houveram discussões, empurrões e insultos entre seguidores de ambos os líderes, como o que aconteceu em Santa Cruz de la Sierra em junho, o que dá a sensação de estar no meio de uma campanha eleitoral.
Apesar dos atritos entre as organizações que respaldam o vice-presidente e o ex-presidente e das acusações nas redes sociais e na mídia, em uma recente reunião entre os dois líderes, mais o presidente Arce, ministros de Estado e representantes de organizações sociais, tiraram uma foto juntos para demonstrar seu “compromisso com a unidade”.
Inimigos externos: a direita
O antagonismo é um elemento substancial da natureza política de Evo Morales. Depois do que aconteceu em 2019 – quando irregularidades foram cometidas no Tribunal Eleitoral para evitar um segundo turno com Carlos Mesa, Morales renunciou à presidência e fugiu para o México – e Jeanine Áñez assumiu constitucionalmente a presidência de forma transitória. Neste contexto, o ex-presidente chegou a um paroxismo discursivo contra tudo o que se move a sua direita. Ele sonha, come e joga futebol com a premissa de que o que aconteceu com ele há três anos foi um golpe de Estado engendrado por seus inimigos históricos.
Esta obsessão, que alimentam permanentemente com seus discursos contra os opositores político-partidários, sociais e cívicos, influencia no poder judicial ao ponto de utilizá-lo para aprisionar, sob a justificativa do golpe, os inimigos de direita. A privação de liberdade de Jeanine Áñez é um exemplo de como é possível a domesticação de um poder contra-majoritário (judicial) para manter vigente o antagonismo amigo-inimigo que se traduz em uma polarização política intermitente que mina as bases institucionais da democracia representativa.
Com a sentença da ex-presidente a dez anos de prisão por incumprimento de deveres e resoluções contrárias à Constituição, a tese do golpe de Estado foi reforçada política e ideológicamente. De fato, seus oponentes Carlos Mesa e Jorge “Tuto” Quiroga foram chamados de “golpistas confessados”. No caso de Luis Fernando Camacho, apesar das bases sociais do MAS pedirem seu encarceramento, ainda não se iniciou um processo contra ele pelo suposto golpe.
O narcotráfico como pano de fundo na política boliviana
No contexto de um campeonato de futebol internacional, a “Copa Evo”, a ser realizada no Chapare em agosto, representantes parlamentares da organização política Comunidad Ciudadana (CC), liderada por Carlos Mesa, se opuseram ao evento. Desta forma, o objetivo é desencorajar os clubes convidados de participar, por considerar que Evo Morales está desempenhando o mesmo papel que o colombiano Pablo Escóbar – nos anos 80 – em uma série de irregularidades vinculadas ao narcotráfico.
Em perspectiva histórica, o narcotráfico e a política partidária (MIR, ADN, MNR) tiveram um entrelaçamento subterrâneo que deixou marcas perenes na sociedade boliviana. Um pano de fundo com o qual praticamente nos acostumamos a viver.
2019 inesquecível, 2025 inescrutável
A briga verbal entre Evo e seus adversários renovadores, por um lado, e seus inimigos à direita, por outro, está quase normalizada na conjuntura política atual. Com os primeiros, as fricções são motivadas pelo controle hegemônico do partido (MAS), frente a 2025. Com os segundos, sua inimizade é de origem histórico-ideológica e tem sido agravada desde 2019.
Somente o destino sabe o que acontecerá em 2025 com Evo e seus adversários conjunturais. A única certeza é que os acontecimentos de 2019 serão novamente explorados por Evo para se vitimizar diante de suas bases sociais com a narrativa de que foi expulso por uma manobra golpista.
*Tradução do espanhol por Giulia Gaspar.
Autor
Cientista político. Membro do Centro de Pesquisa Política da Faculdade de Direito da Universidad Autónoma Gabriel Rene Moreno (Santa Cruz de la Sierra). Publicou o ensaio "Rebelión y Pandemia". Proceso político-electoral en Bolivia 2019-2020" Edited by Plural.