O surto de Covid-19 levou ao fechamento total das fronteiras na América do Sul e, em alguns casos, a sua militarização para conter a pandemia, deixando milhares de migrantes retidos tentando retornar aos seus países de origem. A crise sanitária é agravada por uma crise econômica cujas dimensões ainda estão sendo estimadas e que tem afetado os migrantes de maneira exponencial: despejos, perda de sustento diário, insegurança alimentar e aumento da xenofobia em alguns países.
Além disso, a crise humanitária que tem gerado um êxodo de mais de cinco milhões de pessoas da Venezuela, principalmente para Colômbia, Equador, Peru e Chile, foi acompanhada de mudanças normativas: criação de permissões temporárias, imposição de vistos e, em alguns países, propostas de reforma das leis migratórias que levaram a políticas mais restritivas.
O retrocesso nas políticas migratórias é cada vez mais latente”
Apesar de nas últimas duas décadas, e com o giro à esquerda na região, leis migratórias vanguardistas em termos de garantia de direitos e cidadania terem sido propostas, como as do Equador e do Uruguai, o retrocesso nas políticas migratórias é cada vez mais latente.
Neste contexto, o Chile e a Colômbia estão debatendo suas propostas de lei de migração. Por um lado, no Chile, a vigência de uma lei dos estrangeiros da era Pinochet (1975), somada aos diversos fluxos migratórios das últimas duas décadas (Haiti, Colômbia, Venezuela), sugere uma mudança necessária e urgente na normativa, ainda mais quando se considera a possibilidade de um novo processo constituinte. A sociedade civil e a academia se pronunciaram sobre o projeto, apontando, entre outras deficiências, que ele não introduz mecanismos de regularização permanente.
Por outro lado, na Colômbia, um país tradicionalmente de envio de migrantes, com 10% de sua população vivendo no exterior, e agora um país receptor com mais de 1,7 milhões de venezuelanos e mais de 500.000 colombianos retornados, a criação de uma lei de migração que reúna todas as regulamentações dispersas é mais do que necessária. A Colômbia não pode continuar multiplicando decretos e deve avançar para uma política inclusiva e garantidora de direitos. A nova lei de migração não pode ser uma simples compilação de normas.
Além desses dois projetos, vários projetos sobre o tema migratório foram recentemente apresentados ao Congresso peruano, entre eles, o Projeto de Lei 5349 de 2020. No mesmo, se pretende a retirada do Peru do Pacto Global para uma Migração Segura, Ordenada e Regular das Nações Unidas, firmado em dezembro de 2018, e crie o crime de entrada irregular, criminalizando os imigrantes, contrariando as normas internacionais a este respeito.
Agora, com estas reformas, quais cenários se apresentam a nível regional após a Covid-19? Estamos diante de um cenário restritivo generalizado? Embora ainda seja cedo para responder a estas perguntas, em princípio os países sul-americanos têm dois caminhos.
O primeiro é fechar definitivamente as fronteiras, um cenário pouco viável já que se viu que, mesmo com o fechamento, a população segue em movimento através de fronteiras porosas e, algumas vezes, com a ajuda de traficantes. O caso da migração da Venezuela é o mais evidente: no início da Covid-19, a população começou a retornar e atualmente os caminhantes já perambulam pelas estradas da Colômbia em direção ao sul.
O segundo é continuar fortalecendo alguns espaços regionais de diálogo, como o Processo de Quito, que, embora não vinculante, coloca a política migratória regional sobre a mesa. Embora isto tenha se concentrado na denúncia da ditadura de Maduro, os países membros não apenas enfrentam o grande desafio de regularizar a população venezuelana, mas também sua inclusão socioeconômica. É evidente que esta população veio para a Colômbia para ficar, embora alguns governos se recusem a aceitá-la, criando medidas temporárias em vez de medidas de longo prazo.
A política de migração regional não pode se concentrar exclusivamente nos fluxos migratórios venezuelanos”
Mas nem tudo é preto e branco. Primeiro, a política de migração regional não pode se concentrar exclusivamente nos fluxos migratórios venezuelanos. Na rota Brasil, Equador, Colômbia há milhares de migrantes em trânsito que necessitam de proteção internacional. O que os governos estão fazendo a esse respeito? Até o momento parecem ser invisíveis.
Segundo, a possível reabertura da fronteira da Colômbia com a Venezuela no próximo mês trará mais migração para a região. Se prevê que levará a mais milhares de migrantes a deixar a Venezuela. Dada esta situação, que possibilidades os governos da região lhes darão de se regularizarem permanentemente? Em um contexto de xenofobia crescente, onde metade dos mais de 5 milhões de pessoas que migraram carece da documentação necessária para uma estadia regular nesses países, o cenário pós-pandêmico é motivo de preocupação.
Em tempos de crise (humanitária ou de saúde, incluindo Covid-19), parece que as políticas migratórias mais restritivas são a solução, e isto pode ser visto em algumas das medidas adotadas para conter os fluxos migratórios na região. Agora parece que os países sul-americanos deixaram para trás todos os vestígios de avançar para uma cidadania sul-americana, como foi proposto em algum momento na extinta UNASUL. Algumas respostas governamentais parecem não corresponder a esta visão de livre mobilidade, uma vez promovida nos espaços de integração regional.
A ideia de uma cidadania sul-americana ainda é utópica. Por enquanto, os governos sul-americanos não terão outra escolha senão continuar enfrentando a migração intra-regional em meio a uma crise econômica e sanitária. A pergunta é: como? Esperamos que seja com respostas acolhedoras que apelam à solidariedade, à hospitalidade, mas acima de tudo, que garantam os direitos dos migrantes e suas famílias, tendo em conta as consequências do Covid-19 em todas as áreas.
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*Tradução do espanhol por Maria Isabel Santos Lima
Foto de Andrés Gómez Tarazona em Foter.com / CC BY-NC-ND
Autor
Cientista política. Professora da Univ. Nacional da Colômbia. Doutora em Estudos Políticos e Relações Internacionais no Institut d'Études Politiques (Sciences-Po) de Estrasburgo (França). Especializada em políticas de migração na A. L.