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Interculturalidade: uma dívida antiga da democracia argentina

Historicamente, o norte da Argentina fazia parte do Collasuyu na divisão imperial inca, e ainda hoje difere de outras províncias em muitos aspectos culturais, que são semelhantes aos dos países vizinhos.

Julián, membro da comunidade indígena Wichí de Santa Victoria II, levanta-se cedo todas as manhãs para assistir às aulas no remoto vilarejo de Santa Victoria Este, um dos mais carentes de toda a República Argentina, no departamento de Rivadavia, próximo à tríplice fronteira com o Paraguai e a Bolívia. O fato de Julián poder estudar educação primária bilíngue intercultural é uma das inovações recentes oferecidas pelo governo de Salta para o departamento com a maior população indígena da província. Essa é uma das conquistas da sentença de 2020, após mais de duas décadas de litígio com o apoio do Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS), em que a Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu que o Estado argentino violou os direitos humanos de 132 membros de comunidades originárias no caso “Comunidades indígenas membros da Associação Lhaka Honhat (Nuestra Tierra) vs. Argentina”.

Historicamente, o norte da Argentina fazia parte do Collasuyu na divisão imperial inca, e ainda hoje difere de outras províncias em muitos aspectos culturais, que são semelhantes aos dos países vizinhos, sendo a província de Salta a mais diversificada cultural e etnicamente do país. No entanto, apesar da decisão, o racismo estrutural e a exclusão são o pão de cada dia para os membros das diferentes comunidades que sofrem com dificuldades para sobreviver devido à escassez de fontes de trabalho na zona.

Para resolver esse problema e tornar efetivos os direitos constitucionais, o governo provincial propôs a implementação, a partir de 1994, com os respectivos atrasos, por meio da pasta da educação, para oferecer cursos de acesso público com orientação intercultural bilíngue no Instituto Superior de Educação “San Ignacio de Loyola”, especialmente a partir da década de 2010. No entanto, após a fase de inscrição, mais de 70% dos alunos aceitos falavam apenas espanhol, eram “criollos” sem domínio de uma segunda língua indígena, enquanto um número significativo de candidatos que tinham direito por lei a acessar uma carreira que pudesse cumprir seus direitos foi deixado de fora. Após fortes protestos de todas as comunidades originárias afetadas, juntamente com a União Autônoma de Comunidades Originárias de Pilcomayo (UACOP), o diretor foi afastado e mais de 90 membros dos povos originários tiveram a oportunidade de refazer um exame para iniciar seus estudos. O que aconteceu demonstra que, apesar da decisão judicial ou do que diz a Constituição, o racismo é estrutural.

A Constituição Nacional de 1994

Na reforma da Constituição Nacional de 1994, a pré-existência dos Pueblos Originarios e seu direito à uma educação intercultural bilíngue foram reconhecidos por sua constituição provincial. Mas foi somente no início dos anos 2000 que o tema começou a ser objeto de debate, quando a existência em uma região “desconhecida” que havia sido dominada cultural e intelectualmente pelo centro do país começou a ganhar relevância.

Na atualidade, o foco da cultura está se abrindo para outras regiões que estão começando a ganhar relevância em termos de atividade econômica e densidade populacional, especialmente os povos originários, após o último censo de 2022. De acordo com o censo, 1.300.000 pessoas, de um total de quase 46 milhões, se percebem como indígenas.

A grande maioria dessas comunidades é economicamente carente, abaixo dos níveis de subsistência básicos. Nesse contexto, muitos membros dessas comunidades optam por se mudar do campo para a cidade, sofrendo aculturação devido à perda do uso de sua língua materna ao longo do tempo e até mesmo ignorando – ou escondendo – suas origens devido a estigmas sobre suas origens não europeias.

Devolução de terras para preservar a cultura

Reverter essa tendência não é fácil, e é por isso que, de acordo com a decisão de 2020 da CIDH, 400.000 hectares no Departamento de Rivadavia da Província de Salta, onde vivem mais de 10.000 pessoas de 132 comunidades indígenas, devem ser declarados território ancestral indígena. Isso implica que toda a população crioula (não originária) que invadiu e desalojou as comunidades, desrespeitando seus modos de vida tradicionais com atividades de forte impacto socioambiental e contrárias à cosmovisão de muitas comunidades, deve ser realocada. A Corte concedeu ao Estado argentino um período máximo de 6 anos (até 2026) para preservar seu direito a um ambiente saudável (Constituição argentina) com um título único que respeite essas áreas de uso comum.

Isso é algo sem precedentes no campo dos direitos dos povos originários, pois apoia a autodeterminação das comunidades e sua capacidade de se autogovernar muito melhor. Entretanto, os problemas enfrentados são múltiplos e a reparação histórica a ser feita tem uma lista aparentemente interminável de desafios.

A decisão também estabelece que devem ser preservados os direitos humanos básicos dos membros das comunidades, que são severamente limitados na área devido, entre outras coisas, à falta de acesso à água potável. Além disso, o Estado deve garantir a interculturalidade real, em que as barreiras linguísticas e de idioma sejam levadas em consideração, o que exige profissionais com competências interculturais, conforme definido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Isso implica oferecer às comunidades serviços que não obriguem as pessoas a viajar mais de 160 quilômetros para acessar sua jurisdição legal na cidade de Tartagal, já que em Santa Victoria Este, por exemplo, as questões judiciais não podem ser tratadas de forma autônoma e sempre é necessário viajar quilômetros e quilômetros, muitas vezes para muitos moradores de ônibus ou de carro, ou em algum transporte facilitado por vizinhos ou amigos para abordar temas legais, dificultando gravemente o acesso a uma justiça intercultural para uma zona com tantas particularidades dentro do campo do direito, e é por isso que eles têm que viajar para Tartagal, a nova cidade que está concentrando o poder socioeconômico no “norte do norte” da Argentina.

Concluindo, para que o Estado cumpra suas obrigações para com os povos originários, ele deve cumprir os requisitos mínimos que certificam sua existência, como os Direitos Humanos Universais sancionados pela República Argentina, como o acesso à água potável ou o acesso à justiça intercultural e multilíngue com participação civil. Todos esses direitos são de difícil implementação e monitoramento no interior de Salta.

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