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Lula e a agenda do Sul Global: paz e desenvolvimento sustentável

O governo Lula trabalha para reverter o retrocesso da grande estratégia brasileira, retomando, como era esperado, o protagonismo do Brasil na América do Sul e na América Latina, com uma política externa que, coerente com sua melhor tradição, tem na promoção da paz e na busca do desenvolvimento sustentável seus dois principais vetores. Essa agenda projeta o país como líder do Sul Global, em um cenário marcado pela reconfiguração multipolar da geopolítica mundial, com destaque para a crescente litigiosidade entre as grandes potências.

Apesar das críticas internas à política de não-alinhamento ativo, desde a posse o Presidente Lula se reuniu com mais de 50 chefes de Estado e de governo que conferiram grande destaque a esses encontros e participou dos principais foros globais, fazendo da interlocução ampla e ecumênica um elemento adicional de legitimação de seu governo. Para o mundo, o presidente Lula é o verdadeiro mito da democracia brasileira. O discurso de abertura dos trabalhos da mais recente sessão da Assembleia Geral da ONU consagrou o presidente em um palco global e marcou o retorno do Brasil à grande política internacional.

No campo da promoção da paz, a presença do país é mais simbólica e reputacional, considerando a sua fragilidade na dimensão estratégico-militar, mas o fato de ter uma diplomacia bem estruturada e um relacionamento fluido e regular com todos os países que integram o sistema das Nações Unidas habilita o Brasil para o exercício da mediação, na qual o principal recurso é a capacidade de persuasão. Apesar das ressalvas reticentes de parte da imprensa, o posicionamento adotado no conflito ucraniano mostrou-se acertado até o momento: o país tem dialogado com todos os atores relevantes, contando mesmo com as bênçãos de uma personalidade icônica como o Papa Francisco e as simpatias de países importantes do outrora denominado Terceiro Mundo.

O grande nó na questão ucraniana é que até agora as grandes potências ganharam com o conflito, com a exceção da Europa em seu conjunto, sobre a qual recaíram os maiores ônus.  Os EUA obtiveram vantagens econômicas concretas com a dinamização de seu complexo industrial-militar e a conquista do mercado energético europeu: a maior parte da ajuda americana para a Ucrânia é na verdade canalizada para a sua indústria bélica e a guerra funcionou como instrumento de hegemonia energética americana no espaço econômico europeu.

Para a China, a guerra também é conveniente. Reforça a dependência russa em relação a sua economia ao tempo em que dissipa as energias militares da OTAN. Enquanto a OTAN estiver na Ucrânia, ela não estará em Taiwan, o próximo estopim geopolítico. Por isso, o apoio chinês à Rússia não falhará. A China aproveitou ainda a janela de oportunidade para projetar sua política externa sobre o Oriente Médio e reforçar sua presença na Ásia Central. A aproximação entre Arábia Saudita e Irã, a volta da Síria à Liga Árabe, a expansão dos BRICs e o avanço nos investimentos logísticos das novas rotas da seda consolidam seus interesses na Ásia.

Já a Rússia, tendo administrado os impactos econômicos das sanções, trata agora de assegurar o butim estratégico representado pela reincorporação das regiões russófonas do baixo Don e da costa do Mar Negro, cuja relevância geopolítica para sua projeção marítima é evidente desde a Guerra da Crimeia no século XIX.

Sendo a guerra a antítese do desenvolvimento sustentável, além de devastar o território ucraniano, sacrificou a segurança alimentar e energética do Sul Global, desviando recursos que deveriam ser canalizados prioritariamente para o financiamento da Agenda 2030 e para a consecução dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), fundamentais para a redução das desigualdades sociais e o enfrentamento da crise ecológica.

O Brasil ao buscar seus interesses na cena global vocaliza também os anseios dessa vasta periferia. O país precisa de parcerias e recursos externos (financeiros e tecnológicos) para promover sua reindustrialização, a transição ecológica para uma economia verde e de baixo carbono, a transição energética para fontes sustentáveis e o aumento da complexidade de seu tecido produtivo e de sua inserção na divisão internacional do trabalho. Para tanto, precisa manter seu perfil de global player e de global trader.

Como consequência desse perfil, é imperativo para o Brasil estimular a cooperação econômica ao tempo em que atua para a superação de antagonismos políticos. O país depende da Rússia, de quem importa fertilizantes e insumos imprescindíveis para o agronegócio; depende das exportações de commodities para a China, de onde provêm os maiores saldos de sua balança comercial; e depende dos EUA, segundo maior importador, mas com uma pauta de maior valor agregado. Ao Brasil interessa o acesso a mercados, tecnologias e financiamentos tanto do Ocidente como da Ásia. Para satisfazer seus interesses plurais, o país terá que negociar sua inserção nas cadeias produtivas da “nearshorização” estadunidense assim como complexificar sua relação com a China, em um contexto de grandes transformações geoeconômicas mundiais.

As habilidades e sutilezas da diplomacia brasileira serão testadas nos seus limites, pois o interesse nacional exigirá que o país seja “algodão entre cristais” para ampliar oportunidades e gerenciar riscos crescentes, enquanto tece uma liderança cooperativa Sul-Sul que seja mais um recurso de poder nesse tabuleiro assimétrico.

Autor

Especialista en Políticas Públicas y Gestión Gubernamental. Investigador del Centro de Estudios Avanzados en Gobierno y Administración Pública de la Universidade de Brasília. Doctor en Ciencias Sociales por la PUC-Rio.

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