No início de janeiro, o sindicato dos transportes iniciou uma greve indefinida com bloqueios de estradas para exigir o adiamento dos empréstimos bancários por seis meses. Um mês mais tarde, o setor público de saúde do departamento de Santa Cruz declarou uma greve de 24 horas exigindo mais pessoal, melhores medidas de biossegurança, e uma quarentena rígida. O conflito se expandiu para as clínicas privadas de todo o país em protesto contra a suposta inconstitucionalidade da Lei de Emergência da Saúde aprovada pelo governo. E os produtores de soja do departamento de Santa Cruz bloquearam as autoestradas em rejeição à faixa de preços, quotas de fornecimento interno, e pedidos de exportação gratuita do seu produto.
Os primeiros cem dias de Luis Arce e do seu vice-presidente David Choquehuanca foram marcados por mobilizações de vários sindicatos. O descontentamento social com determinadas medidas governamentais, no meio da pandemia e de um processo pré-eleitoral subnacional, continua gerando graves consequências econômicas e sanitárias. Arce, contudo, pretende marcar fronteiras ideológicas em vez de encorajar cenários de entendimento e deliberação política com diferentes setores do país.
Eleições Subnacionais
No dia 7 de março, haverá eleições municipais e departamentais para eleger prefeitos e governadores. Este processo dará luz verde a uma nova configuração política a nível territorial na Bolívia. Neste contexto, o ex-presidente Evo Morales reapareceu como chefe nacional de campanha do MAS e com uma estratégia discursiva incisiva no departamento de Beni, onde a ex-presidente interina Jeanine Áñez é candidata a governadora.
Na sua turnê nacional, Morales apoiou mais uma vez a construção da autoestrada sobre o território indígena e o Parque Nacional Isiboro Sécure (TIPNIS), atacando eleitoralmente Áñez, representante política, segundo ele, da “direita que prejudica” a construção de obras para o desenvolvimento. Em 2011, durante o seu segundo mandato, uma marcha indígena de rechaço dessa proposta foi a primeira ruptura com o discurso indigenista e de proteção ambiental do MAS.
De acordo com as pesquisas de intenção de voto, os candidatos pró-governamentais à prefeitura das cidades capitais do eixo – La Paz, Cochabamba, Santa Cruz e El Alto – não têm qualquer possibilidade de vencer. Por conseguinte, é provável que as novas configurações políticas a nível das entidades territoriais autônomas constituam um contrapoder desconfortável à predominância política de Arce e Choquehuanca a nível parlamentar.
Fronteiras ideológicas
A chegada de Luis Arce e David Choquehuanca ao governo, após vencer as eleições com 55% dos votos em novembro, implicou um novo momento político para a Bolívia. A legitimidade alcançada nas pesquisas e a esperança recarregada diante da crise sanitária, social e econômica causada pela pandemia restaurou uma certa estabilidade institucional ao país após quase um ano de governo interino e instabilidade política.
Entretanto, o estilo político do presidente estabeleceu fronteiras ideológicas, no modelo do ex-presidente Evo Morales, ao insistir na tese de que o que aconteceu em 2019, com base nas supostas irregularidades do Supremo Tribunal Eleitoral para alterar os resultados, foi um golpe de Estado. Este comportamento político do presidente é repreensível já que alimenta o confronto em tempos de incerteza, estresse e escassez.
Estes primeiros cem dias de governo foram marcados pela distribuição de títulos contra a fome, a compra de vacinas e medicamentos contra a Covid-19, a aprovação de impostos para milionários ou o adiamento de créditos para setores populares. Mas também pelas acusações permanentes ao governo anterior, os discursos políticos de Evo Morales, a anistia aos partidários do MAS processados penalmente por supostos crimes cometidos durante os conflitos de 2019 e 2020 e as mobilizações sociopolíticas de diferentes sindicatos severamente afetados pelas duras ondas do coronavírus.
A desconformidade daqueles mobilizados com as decisões políticas do governo é um sintoma de que a gestão pública está falhando em diferentes flancos. Embora o novo governo tenha legitimidade social por causa dos resultados nas urnas, seu comportamento político joga com a mesma lógica política estabelecida por Morales: demonizar os inimigos políticos. Prova disso foi a devolução ao Fundo Monetário Internacional (FMI) de um empréstimo de um milhão de dólares contraído em 2020 pelo governo interino de Áñez para combater a pandemia.
Quando o governo nacional, confiante no apoio da maioria, afasta a minoria de um altar moral e divide os cidadãos em bons contra maus, está minando qualquer possibilidade de prosperidade nacional. Se continuar assim, é provável que nos próximos anos, quando a tempestade provocada pela pandemia passar, o sol brilhe apenas para uma parte dos bolivianos. Em outras palavras, os primeiros cem dias do governo do MAS semearam mais dúvidas do que certezas.
Tradução do espanhol por Maria Isabel Santos Lima
Foto do Centro de Desenvolvimento da OCDE em Foter.com / CC BY-NC-ND
Autor
Cientista político. Membro do Centro de Pesquisa Política da Faculdade de Direito da Universidad Autónoma Gabriel Rene Moreno (Santa Cruz de la Sierra). Publicou o ensaio "Rebelión y Pandemia". Proceso político-electoral en Bolivia 2019-2020" Edited by Plural.