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O milho transgênico vs. a soberania nacional

O conflito sobre a restrição do México às importações de milho transgênico é uma disputa entre os interesses da indústria agrícola estadunidense e tanto a indústria biotecnológica como o esforço do governo mexicano para recuperar parte da soberania externa que foi perdida nos últimos 40 anos. As advertências de Washington de que o não cumprimento dos acordos comerciais do T-MEC poderiam conduzir a implementação de tarifas dos Estados Unidos podem muito bem ser uma manifestação do que Colin Crouch denominou pós-democracia: governos formalmente democráticos (liberais), nos quais são celebradas eleições periódicas, mas nos quais as corporações empresariais não estão subordinadas à autoridade do Estado nacional.

Pós-democracia e “colonialidade”

Nas pós-democracias, os interesses empresariais têm um poder tão esmagador que fazem lobby para modificar a normativa nacional a seu favor. A tomada de decisões ocorre em espaços privados e ocultos do escrutínio público, ou seja, de costas para a opinião pública, que, no final, pode ser fabricada a la carte.

Talvez o caso do México não seja de uma pós-democracia, pois não é possível assegurar que em algum momento tenhamos conseguido consolidar instituições democráticas liberais. Mas os interesses empresariais operam no México exatamente na mesma direção: em prol da dissolução da soberania nacional e em favor dos interesses empresariais.

De fato, podemos pensar que, em regimes que não consolidaram instituições democráticas mais ou menos fortes, os interesses das corporações transnacionais operam de forma mais enérgica e predatória e os estruturaram não como pós-democracias, mas de acordo com o que Walter Mignolo chamou de matriz da “colonialidade”. Trata-se de uma lógica na qual os capitais externos trabalham em cumplicidade com as elites internas para extrair riquezas, apropriar-se da mão de obra e dos recursos de um país e saquear seus entornos ambientais por meio da subjugação e do enfraquecimento do Estado soberano.

Uma postura anti-ciência?

O problema do milho transgênico pode ser entendido dessa forma. Mas, publicamente, assume a forma de uma discussão sobre evidências científicas. O governo mexicano alerta sobre o perigo do herbicida glifosato, que tem sido associado a casos de câncer nos Estados Unidos e na Europa, e diz que permitir que as sementes de milho transgênico entrem no país poderia contaminar as variedades nativas do México e afetar a biodiversidade. Recordemos que o México é um ponto central de origem do milho e tem cerca de 60 variedades nativas. 

Washington apenas responde usando a velha retórica das empresas de tabaco e petróleo contra a mudança climática, que essas alegações científicas não têm uma validação científica consistente. Isso poderia ser verdade, mas não é o cerne do problema, apenas sua justificativa retórica.

Pode-se responder a isso de diferentes maneiras: apelando para o princípio precatório (que é o que o governo mexicano de fato fez), afirmando que, diante de um perigo ou ameaça suficientemente grande com possíveis efeitos irreversíveis, a falta de evidências contundentes não será motivo suficiente para não tomar medidas precatórias. Uma mera suspeita razoável — o que implica que a evidência deve apontar para o risco, mesmo que suas conclusões não sejam definitivas e irrefutáveis — deve ser suficiente.

Ao mesmo tempo, poderíamos considerar ainda, de acordo com o conceito de ciência pós-normal de Funtowicz e Ravetz, que quando a ciência é usada para justificar temas de política, especialmente quando estamos falando de sistemas complexos, como os socioambientais, ela não dá certeza em relação às recomendações. Isso significa que, na realidade, os argumentos “comprovados cientificamente” subcontrataram a ciência para legitimar uma decisão política. O caso da segurança do milho transgênico é um exemplo claro desse uso perverso da certeza científica (ou da suposta falta dela) para fins políticos e econômicos.

Transferência de tecnologia, transferência de cultura

Entretanto, o argumento mais preocupante diz respeito aos efeitos que a introdução do milho transgênico poderia ter sobre as formas de organização do trabalho e a estrutura social de grande parte da zona rural do México. Nesse caso, não podemos esquecer que os defensores da introdução do milho transgênico são os agricultores do norte do país, onde as enormes extensões de terra viabilizam a aplicação da agroindústria intensiva, que depende de grandes máquinas e agroquímicos para cultivar monoculturas.

No entanto, sua introdução no sul e sudeste do México é absolutamente inviável: ela não apenas afetaria as variedades de milho, mas também a biodiversidade natural da área, que seria seriamente prejudicada por extensas plantações de sementes transgênicas resistentes a herbicidas que seriam fatais para outras plantas. Além disso, como as autoridades têm insistido exaustivamente, a dieta mexicana, especialmente na área mesoamericana, é altamente dependente do milho, tanto do ponto de vista cultural quanto nutricional. A introdução de tecnologias não é neutra, pois traz consigo a cultura, portanto, é de se esperar que a importação de milho transgênico para consumo humano afetaria não apenas a saúde ou a biodiversidade, mas também os hábitos alimentares e a cultura culinária.

De fato, a transferência de tecnologia também transfere cultura, inclusive a cultura laboral. As formas de organização social dos povos indígenas e das comunidades rurais se estruturam, em grande parte, em torno da terra e das funções de trabalho de cada indivíduo. A introdução dessa tecnologia poderia ter consequências de desintegração social, como aconteceu no passado quando os subsídios para o campo foram retirados durante o salinismo, o que causou uma onda de migração sem precedentes para as cidades e para os Estados Unidos.

Em defesa da autodeterminação

Portanto, os motivos para se opor à introdução do milho transgênico não são retórica anti-científica (há plantações de algodão e soja transgênicos no México) ou nacionalismo rígido. Há boas razões para sermos cautelosos. O problema é que para os grandes capitais, estes não são importantes. Assim, o conflito precisa assumir a forma de uma defesa da soberania externa, uma defesa da capacidade de autodeterminação em assuntos de extrema importância, como a defesa da biodiversidade, a assistência de saúde e a preservação de nossas culturas.

Autor

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Professor da Universidade Autónoma Nacional do México (UNAM). Doutor em Filosofia pela UNAM. Especialista em avaliação axiológica de tecnologias e filosofia política da ciência.

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