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O ódio a mulheres na raiz do extremismo violento

Coautora Michele Bravos

Em 2023 temos visto um crescente debate sobre misoginia e a disseminação de discursos masculinistas na internet brasileira. Grupos masculinistas, ou seja, meninos e homens que menosprezam e odeiam mulheres a partir de uma lógica misógina, têm conquistado espaços em canais de YouTube, plataformas de jogos online, grupos de aplicativos de mensagens, fóruns e blogs com um discurso marcado pelo ressentimento.

Percebe-se que o ressentimento é o que une não somente grupos misóginos, mas a extrema direita como um todo. O incômodo pela avanço dos direitos das mulheres, da população LGBTQIA+ e de negras e negros, por exemplo, organiza essas pessoas em prol de uma revolta violenta já que, para um misógino, esses avanços trazem um sentimento de retrocesso dos direitos dos homens e de redução da sua masculinidade.

Para os grupos misóginos, as mulheres são as grandes inimigas da sociedade, sendo necessário que retornem para os espaços privados de sujeição. Para eles, mulheres são aproveitadoras, manipuladoras, interesseiras e merecem todo castigo possível. São “diabolheres” e “merdalheres”. O ódio se estende para mulheres da extrema direita, política comum dos grupos misóginos. São as “conservadias” que não mereciam estar em espaços de poder mesmo sendo ferramenta de disseminação de discursos machistas.

Movidos por essas ideias em um ambiente virtual que mais impulsiona do que freia a misoginia, meninos e homens já dessensibilizados – e, portanto, mais vulneráveis aos discursos de extremismo violento – conhecem comunidades virtuais que acolhem o seu ressentimento, como também o sentimento de não-pertencimento, de rejeição e de indignação com as instituições. Na trama desses grupos masculinistas estão entendimentos distorcidos sobre gênero e sexualidade – componentes essenciais na compreensão da identidade de um indivíduo e por isso tão presentes nos discursos de radicalização.

Há no ambiente virtual, por exemplo, comunidades de incels, celibatários involuntários, meninos e homens que se sentem rejeitados sentimentalmente por não se adequarem a um padrão social. Para eles, existe uma regra que rege um suposto “mercado sexual”, o qual descreve as relações de atração entre homens e mulheres. A regra, conhecida como “80/20”, supõe que 80% das mulheres se atraem por apenas 20% dos homens considerados socialmente superiores na sociedade. Esses 20% são os homens “alfa” e os outros 80% são os homens “beta”.

Assim, percebe-se que o que antes eram conceitos utilizados pelos masculinistas, tornam-se movimentos, como é o caso dos redpill e blackpill. Estar “redpillado” significava acordar para a verdade, em referência ao filme “Matrix” quando o personagem Neo tem a escolha de tomar a bluepill e permanecer na ignorância ou escolher a redpill e, enfim, conhecer toda a verdade. A verdade, para esses grupos, é de que a sociedade é dominada pelas mulheres, que estão em vantagem sobre os homens. Já os blackpill representam uma vertente mais fatalista, entendendo que não havendo jeito de mudar a sociedade e estando eles destinados à exclusão, desistem de uma relação amorosa com mulheres e abordam o suicídio com frequência.

É nesse cenário que a mercantilização da misoginia a partir da venda de cursos de “como conquistar uma mulher”, “como ser um homem de sucesso”, “como atrair a mulher certa” deve soar como um alerta. A primeira vista podem não representar grande risco, mas são uma porta de entrada – hoje, explícita e legitimada – para um processo de radicalização, uma vez que são permeados de incitação à subalternização das mulheres – o que futuramente leva à discriminação de outros grupos – em um ambiente virtual que opera como aliado da misoginia e de todo tipo de ódio.

Do online para o off-line

Não é possível afirmar que todo integrante de um grupo masculinista online, que possivelmente manifeste discriminações no ambiente virtual, praticará violência no mundo off-line. Porém, ao adentrar nesses grupos, seus integrantes têm o sentimento de rejeição – comum em suas trajetórias – mobilizado para o ódio a grupos minorizados, assim como são expostos a uma idolatria àqueles indivíduos que um dia “se rebelaram contra as instituições/o sistema” e protagonizaram um ataque off-line (na maioria das vezes, contra escolas).

O caso de Suzano (SP), ocorrido em 2019, quando dois jovens atacaram uma escola deixando 11 feridos e 8 mortos, é um exemplo dessa conexão. Há indícios de que um dos autores do crime teria buscado informações em um fórum de incels para planejar o ataque.

A pesquisadora Mariana Valente, escritora do livro Misoginia na Internet, lembra a importância de perceber os ambientes online e off-line como um sendo a continuidade do outro. Isso ajuda a entender a história emaranhada de meninos e homens ressentidos, que no processo de radicalização para o extremismo violento, são incitados a transpor seu ódio do online para o off-line, o que, posteriormente, repercutirá no online, retroalimentando a violência.

Disputa do espaço online

Não é possível apontar se existem “perdedores” ou “ganhadores” no ciberativismo. A disputa de narrativa e de espaços de debate e poder está em jogo. Essa disputa passa pela produção de conteúdo e notícias, que chegam em nossas mãos por questão de segundos e, muitas delas, configuradas como notícias falsas e, desta forma, caracterizando o que chamamos de “pós-verdade”.

É nesse contexto que caminhamos para 2024, em uma crescente disputa entre a busca por maiores direitos dos grupos historicamente subalternizados e violentados e uma ofensiva neoliberal e radicalizada que odeia, especialmente, mulheres, pessoas LGBTQIA+, negras e negros e não se importam com os altos números de feminicídios, lgbtfobia e racismo.

Assim, é necessário formular estratégias de prevenção à radicalização, políticas públicas que atravessem a educação, a assistência social, sem medo de falarmos sobre igualdade de gênero e outras masculinidades possíveis – distantes de um padrão que se expressa pela opressão do outro.  É igualmente necessário que se observe de perto o que os jovens têm buscado nas redes sociais, propondo-se alternativas que os retirem da rota da radicalização. Além disso, os adultos precisam se inserir no debate para que reflitam sobre o seu papel na construção de uma sociedade que não seja ressentida.

*Este texto faz parte do projeto (Re)conectar: aproximando pessoas para superar a violência às escolas, realizado pelo Instituto Aurora, com apoio institucional do L21. Para apoiar a iniciativa, acesse: https://bit.ly/projeto-reconectar

Bruna Camilo, Doutora em Ciências Sociais pela PUC Minas. Mestra em Ciência Política pela UFMG. Membro da Associação Visibilidade Feminina. Pesquisa gênero, misoginia e extrema direita.

Michele Bravos, Diretora Executiva do Instituto Aurora de Educação em Direitos Humanos. Mestre em Direitos Humanos e Políticas Públicas pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).

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