Coauthor Luciana Veiga
Pesquisa do Reuters Institute for the Study of Journalism da Universidade de Oxford mostra que o interesse por notícias sobre mudança climática é mais elevado na América Latina do que em qualquer outra parte do mundo. Alguns observadores associam esse resultado com a crescente exposição às consequências dos desastres ambientais, de fato as chuvas torrenciais desmoronam residências e matam pessoas aqui mais do que em qualquer outro lugar. Na região, o Brasil ocupa o terceiro lugar, depois do Chile (52%) e do México (47%), empatando com a Colômbia com 46%, muito à frente dos EUA (30%) e mesmo de países europeus como Reino Unido, França e Alemanha. Será esse receio climático fruto então da vulnerabilidade objetiva?
O mesmo estudo mostra que tal interesse é maior entre as pessoas com salários e nível de escolaridade mais altos, ou seja, não justamente aqueles afetados pelas calamidades naturais. Mais do que refletir a experiência direta, essa maior consciência estaria refletindo mais informação ou outro tipo de base subjacente?
Cinquenta anos atrás, coincidindo com os primeiros alertas sobre as mudanças climáticas feitos pelo Clube de Roma, o professor Ronald Inglehart argumentava no seu artigo “The Silent Revolution in Europe” que o desenvolvimento econômico e o aumento dos níveis educacionais e da qualidade de vida estavam levando -e continuariam levando- ao abandono de valores de orientações materialistas, voltados para a acumulação e a sobrevivência física imediata, em direção a valores pós-materialistas, com ênfase na liberdade, na autoexpressão e na realização pessoal.
A agenda do meio ambiente estaria vinculada ao pós-materialismo, uma vez que se alinhava com nascentes prioridades pelo bem-estar entendido muito além do conforto material ou enriquecimento financeiro, o experimentalismo estético e uma noção de participação e autocuidado onde o contexto natural era privilegiado.
Contudo, a situação encontrada na América Latina cria no mínimo ressalvas à aquele argumento de uma mudança de valores rumo a prioridades pós-materialistas. Por exemplo, em 2004, os pesquisadores Ponte e Smith estudaram a relação entre valores e atitudes em torno da contaminação ambiental do México e encontraram preocupação ambiental associada às carências materiais. Ou seja, os resultados foram opostos aos propostos pelo professor Inglehart.
Podemos dizer que no Brasil, ocorre algo parecido. Se bem é verdade que as classes mais altas são as mais sensíveis a esses assuntos, o aquecimento global não passa despercebido na base da pirâmide, a que mais imediatamente sofre os efeitos da devastação climática. Segundo pesquisa IPEC de 2021, em plena pandemia onde as inquietações poderiam tranquilamente estar passando longe do meio ambiente, sete em cada dez brasileiros com escolaridade mais baixa admitiam alta preocupação.
Um terceiro argumento é revelado por cientistas sociais da Universidade de Oxford: a maior ou menor sensibilidade e mobilização climática está vinculada com a polarização política. Nos Estados Unidos, por exemplo, uma pessoa de esquerda tende a apresentar 41 pontos percentuais a mais de chances de se interessar por notícias de mudança climática do que uma pessoa de direita em 2021.
Já no Brasil, considerando o discurso terraplanista do bolsonarismo e o desmonte da autoridade ambiental feito durante sua presidência, seria razoável supor um impacto da radicalização partidária na atenção e urgência sentida ao redor da questão climática. Contudo, as sondagens feitas durante a campanha presidencial de 2022 indicavam que seja de esquerda ou de direita, o eleitor brasileiro colocava uma gestão ambiental positiva como consideração extremamente relevante, sem diferenças significativas entre votantes de Bolsonaro e Lula na priorização do cuidado com o meio ambiente.
Isso pareceria refletir a efetividade com que a proteção ambiental e a questão climática foram internalizadas e associadas a eventos emblemáticos como desmatamento e fogo na Amazônia, hoje sinônimos de tragédia independente do alinhamento político dos cidadãos. Estudos com eleitores de Bolsonaro admitiram ter se desencantado com o ex-presidente a partir do seu comportamento irresponsável com a Amazônia. Avaliam que a atitude de omissão ambiental de Bolsonaro promoveu o crime, revelando a hipocrisia do discurso da lei e da ordem com que se elegeu e tentou se reeleger.
Mesmo diante dos retrocessos ambientais e climáticos fenomenais vividos nos últimos anos, o estudo do comportamento ambiental dos brasileiros traz conclusões surpreendentes. Um, é que mesmo com uma retórica e prática política negacionista por parte do governo reacionário de Bolsonaro, cidadãos de direita e esquerda não abrem mão de expressar sua angustia com o aquecimento global e suas causas.
A preocupação ambiental é consenso e não reflexo de divisões partidárias como nos Estados Unidos. Outra conclusão é que essa importância da crise ambiental não precisa ter uma origem exclusivamente atrelada à vulnerabilidade e vivência trágica diante de fenômenos climáticos adversos: os mais educados e endinheirados conseguem manifestar um receio até maior que os cidadãos com menos recursos e, portanto, mais expostos às adversidades causadas pelo excessivo calor, chuva ou secas.
E, por último, essa predisposição dos mais afluentes é menos o resultado de ter superado as angustias de sobrevivência material abraçando valores pós-materialistas e mais o fruto de conseguir conectar essas tragédias que vem de um clima em crise com suas consequências negativas para a segurança física, alimentar e psicológica, ou seja, conectadas as adversidades materialistas decorrentes do aquecimento global.
Este artigo foi realizado em co-autoria junto com Luciana Veiga (professora da UNIRIO/FGV), Julian Borba (professor da UFSC) e Gabriela Ribeiro Cardoso (aluno do doutorado da UFSC) e foi divulgado no marco do X congresso da WAPOR Latinoamérica:www.waporlatinoamerica.org
Autor
Professor da Universidade Estadual de Maringá. Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).