Luis Arce deu o grande salto ao vazio. Ao meio-dia de quarta-feira, 28 de dezembro, forças policiais detiveram o governador de Santa Cruz, Luis Fernando Camacho, e o levaram a La Paz para que o procurador anticorrupção decidisse seu destino. Com Camacho, ampliou-se a lista de presos acusados judicialmente de serem autores materiais da saída de Evo Morales do poder em novembro de 2019, o que o Movimento ao Socialismo (MAS) qualificou como um golpe de Estado.
Se o governo encarcerou muitos meses antes a ex-presidente da Bolívia, Jeanine Áñez, e o ex-líder do Comitê Cívico Potosinista, Marco Pumari (ambos protagonistas da crise política de 2019), foi para evitar que se tornassem em um fator de conflito. Áñez já estava mostrando números vermelhos em seu apoio aos cidadãos antes de ser detida, e Pumari havia lutado, em outubro de 2020, com uma multidão de pessoas na praça de Potosí.
Com Camacho, a situação era distinta. Ele tinha conseguido um bom apoio nas eleições presidenciais de 2020 e tinha conseguido ganhar o cargo de governador de Santa Cruz um ano depois. Sua detenção poderia gerar uma reação na terra de Santa Cruz e abrir uma frente de tensão em um dos departamentos mais importantes tanto economicamente como politicamente do país. Este foi sempre o raciocínio do governo: ser duro com uns e prudentes com outros.
O que fez o governo dar o salto? O que o fez deixar um cálculo político para causar um conflito de imprevisíveis consequências? Tem a ver com a disputa de liderança dentro do MAS. Como se sabe, Morales, ao não encontrar em Arce a vontade para mudar ministros e ter espaços de poder no governo, começou a atacar o presidente, acusando-o de estar ligado à direita do país, com a qual Arce teria entrado em um pacto para não castigar os “golpistas”.
Claramente, Arce, mediante a prisão de Camacho, tenta deter esta crítica, o que poderia tanto debilitá-lo como fortalecer politicamente a Evo. Além disso, poderia abrir uma crise de apoio para ele tanto na Assembléia Legislativa quanto nas organizações sociais do MAS, muitas das quais não aprovam a liberdade de Camacho. É um movimento político chave porque, por um lado, satisfaz os radicais do MAS e, por outro, deixa as forças pró-Evo sem discurso, que terão que reconhecer a “bravura” de Arce diante de Camacho. Mas é uma jogada arriscada e de um alto custo político.
As emoções como reação política
Em 22 de outubro de 2022, Santa Cruz iniciou uma greve geral para demandar que o censo populacional e habitacional fosse realizado em 2023 e não em 2024, como o governo havia proposto. Deve-se levar em conta que os dados do censo são a base para a distribuição dos recursos econômicos entre departamentos, o que, para uma região com um forte crescimento populacional como Santa Cruz, é fundamental para seu desenvolvimento.
O que foi inédito na greve (além de sua longa duração de 36 dias) foi que ela abriu um espaço para o debate público. Foram criadas comissões técnicas nas quais políticos e especialistas em demografia debateram longamente sobre a data do censo. No processo, embora tenha havido bloqueios de ruas nas cidades de Santa Cruz e eventualmente confrontos entre vizinhos e forças policiais, em geral o conflito terminou sem saldos lamentáveis.
Hoje, devido à detenção de Camacho, as coisas são diferentes. A resposta da população de Santa Cruz tem sido de indignação e raiva. Assim que a multidão que saiu para protestar ouviu a notícia, incendiaram o prédio da Procuradoria Geral, queimaram mais de 30 veículos e as casas de vários funcionários do governo, levaram à suspensão dos vôos em dois aeroportos e fecharam as principais estradas do departamento por algumas horas. A violência continuou nos dias seguintes, com confrontos entre civis e forças policiais na icônica área do Cristo Redentor.
Por trás dessas ações há um fundo estrutural que apoia as reações emocionais. Uma delas é a crise de mediação entre o Estado central e as regiões. O MAS, estando no poder, e ao constatar sua debilidade política e eleitoral em nível subnacional, procedeu à anulação dos prefeitos e governadores da oposição por via judicial, causando assim um vácuo político que não pôde ser preenchido por organizações sociais simpatizantes do MAS. Como resultado, o governo não pode dialogar com as regiões porque suas autoridades não têm representatividade nem legitimidade, ainda mais quando, a rigor, a Bolívia carece de um sistema de partidos, se com isso queremos dizer partidos institucionalizados que participam continuamente de várias eleições.
Isto tem levado as regiões a se sentirem abandonadas, não ouvidas e desprezadas pelo poder governamental, e este é precisamente o sentimento que está surgindo em Santa Cruz. Para uma grande parte da população de Santa Cruz, a detenção de Camacho (figura controversa, de direita e conservadora) é um ato abusivo e mostra mais do autoritarismo de Morales. Esta percepção é agravada pelo fato de que o sistema de justiça boliviano não é tão implacável com as autoridades do MAS, que muitas vezes não são apreendidas apesar dos sinais generalizados e evidentes de corrupção. Por exemplo, o governador de Potosí, Jhonny Mamani, não foi preso até agora, apesar das alegações de que ele tentou comprar 41 ambulâncias superfaturadas.A Bolívia inaugurou 2023 com uma crise política imprevista. Seria errado pensar que a reação em Santa Cruz só tem a ver com o encarceramento de Camacho. É o gatilho, mas não a causa. Como vimos, há vários fatores de tensão, tais como a instrumentalização da justiça ou a ausência de mediações políticas, que permanecem sem solução e são o que em última instância alimentam a agitação e a violência. A Bolívia passa por um processo de reconfiguração política baseado na disputa interna dentro do MAS. Trata-se de uma luta pelo poder que não oferece nenhum projeto político novo a não ser o de continuar com o evismo, mas sem Evo.
Autor
Cientista político. Professor e pesquisador da Universidade San Francisco Xavier (Sucre, Bolívia). Doutor em Ciências Sociais com especialização em Estudos Políticos por FLACSO-Equador.