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O uso da força em águas internacionais: uma reflexão jurídica a partir do Caribe

O ataque das forças estadunidenses em águas internacionais revela a tensão entre segurança e legalidade, questionando os limites do uso da força no direito internacional.

Em 1º de setembro de 2025, uma lancha venezuelana foi destruída por forças estadunidenses  em águas internacionais do Mar do Caribe. O ataque, confirmado pelo presidente Donald Trump, deixou onze pessoas mortas. A embarcação estava supostamente ligada ao grupo criminoso Tren de Aragua e ao tráfico de drogas. No entanto, a operação foi realizada sem autorização multilateral nem alegação formal de legítima defesa. O fato reacendeu um debate que vai além do aspecto técnico: um Estado pode exercer força letal fora de sua jurisdição sem violar o direito internacional?

Este episódio, ocorrido em um espaço que não pertence a nenhum país, levanta uma tensão crescente entre segurança e legalidade. Em um mundo onde as ameaças se movem sem fronteiras, como os Estados devem agir sem enfraquecer a ordem jurídica internacional?

O que dizem as normas internacionais?

As águas internacionais (também chamadas de alto mar) são regidas pela Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CONVEMAR). Esta estabelece que nenhum Estado tem soberania sobre elas e que todos gozam de liberdade de navegação, pesca e sobrevoo. Mas essa liberdade é condicionada: o artigo 88 reserva o alto mar para fins pacíficos. O uso da força militar, portanto, só é permitido em circunstâncias excepcionais.

As embarcações que navegam em alto mar estão sob a jurisdição do país cuja bandeira arvoram. Elas só podem ser inspecionadas se houver suspeitas fundamentadas de pirataria, tráfico de escravos ou se não tiverem nacionalidade. Além disso, o uso da força é limitado pela Carta das Nações Unidas, que o permite apenas em legítima defesa diante de um ataque armado, desde que seja imediato, necessário e proporcional.

No caso recente, não foi alegada legítima defesa, não houve resolução do Conselho de Segurança, nem foi demonstrado que a lancha era pirata ou estava sem bandeira. Portanto, a legalidade da ação é questionável. O alto mar não pode se tornar um terreno sem lei onde cada Estado age de acordo com seu próprio critério.

O que é segurança nacional?

Paralelamente, a noção de segurança nacional evoluiu nas últimas décadas. Hoje, ela inclui ameaças como o narcotráfico, o terrorismo e o crime organizado. Essa expansão levou alguns governos a justificar ações extraterritoriais em nome da segurança. Mas essa lógica pode corroer princípios fundamentais do direito internacional, como a proibição do uso da força e o respeito à soberania estatal.

A responsabilidade internacional de um Estado é ativada quando ele viola obrigações jurídicas, como o uso da força sem autorização, a afetação da soberania de outro país ou a violação dos direitos humanos. Neste caso, os direitos fundamentais dos ocupantes da embarcação podem ter sido violados, especialmente o direito à vida. Além disso, não há evidências de que tenham sido esgotados os mecanismos de cooperação regional ou assistência jurídica mútua, como os previstos na Convenção contra o Crime Organizado Transnacional.

A luta contra o narcotráfico não pode se tornar uma desculpa para o uso irrestrito da força. As ações estatais devem ser guiadas pelo princípio da proporcionalidade e pelo dever de diligência devida. Agir fora do próprio território, sem mandato multilateral e sem garantias jurídicas, enfraquece a ordem internacional e abre a porta para abusos.

Do ponto de vista jurídico, a destruição de embarcações em alto mar sem autorização multilateral não é permitida. O direito internacional consuetudinário e os tratados em vigor contemplam apenas três exceções: legítima defesa, autorização do Conselho de Segurança da ONU e operações multilaterais previamente acordadas. Mesmo em contextos extremos, como a luta contra a pirataria na Somália, foram necessárias resoluções específicas para permitir ações militares.

Sem essas condições, qualquer intervenção é considerada unilateral e pode violar princípios como a não intervenção e o respeito à vida. No caso recente, a ausência de justificativa legal torna o fato uma medida controversa, com implicações jurídicas relevantes.

Revisão do direito internacional

Este incidente obriga a repensar o papel do direito internacional em contextos de segurança transnacional. O direito pode se adaptar a novas ameaças sem perder sua essência garantista? Estamos diante de uma reinterpretação funcional do princípio do não uso da força ou de sua progressiva erosão?

A legalidade internacional não é um obstáculo, mas uma garantia. A segurança deve ser exercida com responsabilidade, transparência e respeito aos direitos humanos. A questão não é se é possível destruir uma embarcação em alto mar, mas como construir uma resposta legítima, eficaz e respeitosa do direito.

O oceano tem sido historicamente um símbolo de liberdade, de comércio, de encontro. Mas também pode se tornar um cenário de tensão, de fogo, de silêncio. Quando uma embarcação é destruída em alto mar e onze pessoas perdem a vida sem processo ou verificação, o direito internacional enfrenta seu maior desafio: continuar sendo relevante.

Este texto não pretende emitir veredictos. Pretende levantar questões. Questões que incomodam, que doem, que exigem respostas jurídicas sérias. Porque se o direito não pode proteger aqueles que navegam em águas sem bandeira, então o mar deixa de ser um espaço comum. E isso, além de qualquer fronteira, interpela a todos nós.

No mar, a lei deve ser a única âncora. Porque sem ela, o que flutua não é justiça, mas incerteza.

Tradução automática revisada por Isabel Lima

Autor

Advogado especializado em direitos humanos e justiça criminal internacional. Possui mestrado em Direito Penal e Justiça Internacional pela Universidade Kennedy, em colaboração com o UNICRI (Instituto Inter-regional de Pesquisa sobre Crime e Justiça das Nações Unidas).

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