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Os donos do mundo, o fascismo e a desinformação digital em rede

A aproximação oportunista de Musk e Zuckenberg com Donald Trump tem pouco a ver com a defesa da liberdade de expressão, e tudo a ver com a defesa da liberdade de suas empresas.

Em 06 de janeiro de 1941, o então presidente dos EUA, Franklin Roosevelt, proferiu no Congresso daquele país seu famoso discurso sobre as quatro liberdades: liberdade de expressão, liberdade religiosa, liberdade de viver sem penúria, liberdade de viver sem medo. Roosevelt estava ciente dos perigos que o nazifascismo representava para essas quatro liberdades. Estava provavelmente também ciente que a liberdade de expressão deve ser empregada como porta voz das outras três, agindo sempre que necessário em sua defesa e jamais contra elas, sob o risco de ser ela mesma silenciada.

Em 07 de janeiro de 2025, Mark Zuckerberg anunciou que iria encerrar a checagem de fatos no Facebook e no Instagram, enquanto no Brasil ainda comemorávamos o Globo de Ouro que Fernanda Torres ganhou dois dias antes, por sua atuação no papel da advogada Eunice Paiva, esposa do engenheiro e ex-deputado Rubens Paiva, sequestrado e assassinado pela ditadura militar brasileira.

08 de janeiro de 2025 marca dois anos da tentativa de novo golpe de Estado no Brasil, com a invasão e depredação das sedes dos Três Poderes, incitadas por um ex-presidente defensor da ditadura que assassinou Rubens Paiva e que chegou a cuspir na estátua do jornalista.

A incitação e organização das ações golpistas, fazendo uso de doses cavalares de desinformação, ocorreram principalmente nas redes de Zuckerberg e Musk. Musk fez uma saudação nazista na posse de Trump. Trump disse que iria cortar o financiamento a pesquisas sobre desinformação.

Os três bilionários são contra quaisquer medidas de regulação das plataformas digitais, por democráticas que sejam, mesmo sabendo que a profusão de desinformação sobre vacinas e medidas protetivas durante a pandemia da Covid-19 nessas plataformas causou milhares de mortes evitáveis, além de inúmeros outros casos de graves danos à saúde pública e ao meio ambiente, linchamentos, assassinatos de crianças, ataques a minorias e à própria democracia.

Como os três nos EUA, hoje, no Brasil, muitos entre os que defendem a ditadura militar, período em que a censura foi mais brutal, posam de paladinos da liberdade de expressão, ao mesmo tempo em que são cúmplices ou permanecem indiferentes a perseguições religiosas, à penúria que aflige multidões e ao terror policial junto aos setores mais vulneráveis da população, em sua maioria pessoas pretas, lá e cá.

Legislações que defendem a liberdade de expressão são uma conquista civilizatória da modernidade, assim como a defesa de outros direitos não menos importantes, como a liberdade de não ser vítima de penúria, calúnia e violência pela sua religião, cor de pele, gênero, etnia, nacionalidade, classe social.

A liberdade de expressão não se sobrepõe aos demais direitos. Pelo menos não no Brasil. E não faz mal lembrar que assim como a extrema direita atual, os nazistas usaram e abusaram da ampla liberdade de expressão da República de Weimar na década de 20 e início de 30 do século passado, propagando mentira, preconceito e ódio, somente para exterminá-la ao assumirem o poder.

Por isso, precisamos nos resguardar para que a bandeira da liberdade de expressão não seja mais uma vez sequestrada e convertida em sua própria mortalha. Esse é um risco que se corre quando uma bandeira que originalmente e ao longo de séculos simbolizou a crítica racional à opressão é empregada como disfarce para a opressão à crítica racional, justificando o negacionismo científico, o supremacismo branco, o revisionismo histórico, o nazismo, entre outras falácias, falcatruas e barbaridades.

Zuckerberg chegou a fazer alusão a cortes obscuras da América do Sul, que cerceariam a liberdade de expressão, provavelmente referindo-se a ações do Supremo Tribunal Federal do Brasil contra abusos de seu novo aliado, Musk, ações que não têm nada de obscuro, sendo, pelo contrário, democráticas, transparentes e amparadas na legislação brasileira. Trump, por sua vez, sai em defesa do interesse das empresas dos Estados Unidos quando este se choca com o interesse público de outras nações.

Na realidade, o que os donos das plataformas querem evitar com sua pretensa defesa da liberdade de expressão são os custos com a checagem dos fatos e com uma moderação responsável dos conteúdos comprometida com o interesse público, mas sobretudo a exposição pública dos critérios que regem a mediação algorítmica de suas plataformas. Essa mediação coordena o tráfico de informações ao redor do mundo, baseado na vigilância de bilhões de pessoas, que orienta e estimula as ações dessas pessoas, com o objetivo de gerar mais engajamento e, consequentemente, lucros para os donos das empresas e seus pares. A verdade é o que menos importa nessa equação, principalmente quando entram em cena seus aliados políticos. E a liberdade de expressão só interessa na medida em que atende a seus desideratos.

Está fartamente demonstrado que o apelo a emoções intensas, principalmente medo e ódio, gera mais engajamento do que debates ponderados e racionais. Esse apelo é a alma do negócio, tanto o negócio dos donos das plataformas quanto o de seus aliados políticos, cujo desapreço pela verdade soma-se ao investimento pesado na construção ardilosa de inimigos imaginários a temer e odiar. Isso vale de Mussolini e Hitler a Donald Trump, passando por personagens menores como temos aos montes no Brasil, cada qual fazendo uso estratégico da mídia de sua época.

No fim das contas, a aproximação oportunista de Musk e Zuckenberg com Donald Trump tem pouco a ver com a defesa da liberdade de expressão, e tudo a ver com a defesa da liberdade de suas empresas atropelarem soberanias nacionais e direitos civis, incluindo a privacidade da população dos Estados Unidos. Tudo isso em troca de lucros astronômicos, em parte auferidos com a circulação da desinformação em suas redes, cujo apelo gera engajamento e receita publicitária, em parte por seu alinhamento com políticos que apoiam seu modelo de negócios desregulado e são eleitos graças à propagação de desinformação nessas mesmas redes. Quando um desses políticos é presidente do país mais rico e bem armado do mundo, há muito a temer.

Por outro lado, embora esses sujeitos se julguem donos do mundo, não são. Podem ser gigantes, mas Austrália, Brasil, Canadá e União Europeia, alvos diretos dos ataques recentes do dono da Meta e do presidente dos EUA, não são anões. Nem Rússia e China.

Autor

Pesquisador do Ibict e professor da UFF, Universidade Federal Fluminense, Brasil. Coordenadora da Rede Nacional de Combate à Desinformação. Autor do livro A Era da Desinformação: Pós-Verdade, Notícias Falsas e Outras Armadilhas.

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