A usina hidrelétrica de ITAIPU representa para o Paraguai o que o complexo petrolífero de Cantarell significou para o México no início da década de 1980: a exploração de recursos naturais com grande impacto na segurança energética dos países e nas grandes fontes de financiamento público. Além disso, em ambos os casos, os altos níveis de produção (de energia ou fontes de energia) colocaram os países no mapa mundial de energia. O Cantarell foi o complexo petrolífero mais produtivo do mundo; a ITAIPU é a segunda maior geradora de hidroeletricidade mundial. As diferenças, no entanto, são relevantes: A ITAIPU aproveita recursos energéticos renováveis para a produção de eletricidade, já o Cantarell declinou da produção de fontes de energia não renováveis (hidrocarbonetos); e o domínio do recurso natural, o potencial hidráulico do rio Paraná, no caso da ITAIPU, é compartilhado, em partes iguais, pelo Paraguai e pelo Brasil.
Essa comparação entre o aproveitamento dos recursos naturais facilita a compreensão do significado econômico de ITAIPU, utilizando um exemplo do mundo do petróleo, talvez mais próximo do cotidiano da população em geral. Mas também oferece uma dimensão de análise da relevância dessa usina hidrelétrica binacional em uma matriz energética global/, cuja participação das fontes renováveis vem crescendo continuamente em todos os exercícios de previsão energética mundial, em grande parte devido à necessidade de reduzir as emissões de gases de efeito estufa (GEE). Propõe-se uma transição energética para o uso de energia com base em tecnologias mais eficientes e na substituição de combustíveis fósseis. O uso crescente de eletricidade gerada por fontes renováveis é uma parte essencial das estratégias para essa transição.
Itaipu: oportunidades e obstáculos
A ITAIPU representa uma oportunidade para o desenvolvimento socioeconômico do Paraguai com base em uma fonte de energia renovável, o que está alinhado com o já mencionado principal desafio da transição energética a escala global. O parque gerador do sistema elétrico do país está baseado exclusivamente na hidroeletricidade. A atual capacidade instalada, com 98% de participação das usinas hidrelétricas binacionais (em especial ITAIPU), permite a geração de mais eletricidade do que o mercado doméstico necessita, condição vantajosa que se estenderia, em princípio, até o início da próxima década.
Essa condição de “bônus energético”, aliada ao período de “bônus demográfico” vivido pelo país e à existência de um marco legal atraente para investimentos estrangeiros, faz do país uma terra de oportunidades para o desenvolvimento de projetos de uma economia “descarbonizada” (baixa emissão de GEE), tanto em termos de produção de commodities (hidrogênio verde, amônia verde, aço verde, entre outros) quanto de implementação de um paradigma de transporte de baixa emissão, com o uso de veículos elétricos. Essas inovações na estrutura industrial e de transporte poderiam, por sua vez, facilitar a participação do setor produtivo do país e da região (devido à existência de minerais estratégicos nos países fronteiriços, como o lítio, por exemplo) nas cadeias de valor e de suprimento de bens relacionados à transição para uma economia de baixas emissões de GEE.
As oportunidades de desenvolvimento socioeconômico baseadas na abundante energia hidrelétrica do Paraguai enfrentam obstáculos relacionados a uma estrutura institucional vulnerável, que dificulta, por um laeo, a implementação efetiva de políticas e regulamentações favoráveis ao investimento, e, por outro, a uma infraestrutura ainda em desenvolvimento, incluindo limitações no sistema de transmissão e distribuição de eletricidade, bem como na expansão da geração sustentável. A empresa estatal de eletricidade, ANDE (Administración Nacional de Electricidad), que tem a exclusividade do fornecimento público, precisa investir pelo menos US$ 600 milhões por ano nos próximos 10 anos para fornecer um serviço altamente confiável e seguro no Sistema Interconectado Nacional. No entanto, o nível de investimento, embora tenha melhorado nos últimos anos, é de apenas 50% do que foi programado. Isso leva o debate a respeito da ITAIPU e das oportunidades de desenvolvimento energético para o âmbito das expectativas de renda, em particular com relação ao valor que pode ser gerado pela transferência de energia da ITAIPU para o mercado brasileiro.
Na realidade, as entidades binacionais, mas particularmente a ITAIPU, têm sido uma fonte de renda e benefícios para a economia paraguaia desde o momento de sua construção e, de forma sustentada, durante os 40 anos de operação. Mais de US$ 500 milhões por ano é a receita líquida que o país obtém com a venda de energia da ITAIPU, o que permitiu que o setor econômico de Eletricidade e Água contribuísse com cerca de 7% do PIB, de acordo com dados oficiais. Os benefícios econômicos recebidos da usina binacional para a geração de eletricidade (honorários de funcionários e contratos, royalties, lucros da contribuição de capital, ressarcimento à ANDE) e o valor adicional recebido do Brasil como compensação pela transferência de energia paraguaia não contratada (a energia produzida é dividida igualmente, de acordo com o tratado que estabeleceu a entidade binacional ITAIPU) têm sido objeto de debate público desde antes da assinatura do Tratado. Não apenas os valores que o Paraguai receberia por ceder sua energia ao país parceiro foram questionados, mas também a obrigação de ceder o excedente energético exclusivamente ao Brasil (que é complementada pelo compromisso brasileiro de contratar todo o excedente energético do Paraguai).
Os valores da compensação pela transferência de energia foram firmemente reivindicados pelo Paraguai nos últimos vinte anos, levando a um aumento de 4.000% em relação ao valor determinado em 1973. Essas reivindicações foram conquistadas durante os dois primeiros mandatos de Lula da Silva como chefe do Poder Executivo do Brasil, com melhores resultados nas negociações do governo de Fernando Lugo. Entretanto, o outro aspecto relevante reivindicado pelo Paraguai (a livre disponibilidade de seu excedente energético) não foi alcançado nas negociações, mas o Brasil sempre cumpriu com a contratação do excedente energético do Paraguai.
Discussões em torno de uma negociação complexa
Há alguns anos, no período que antecedeu a revisão do Anexo C do Tratado de ITAIPU (parte do acordo bilateral que estabelece as condições financeiras e de comercialização de energia), que entrou na fase de revisão programada para agosto de 2023, intensificou-se no Paraguai a discussão sobre as estratégias para a revisão do acordo. A motivação decorre de dois fatos relevantes: o bônus de energia seria mantido por pelo menos mais uma década; e o custo do serviço de eletricidade foi reduzido em pelo menos 60% em relação ao valor de 2021, devido ao fato de que o maior componente do custo – pagamento de amortização e juros da dívida – deixará de existir a partir de 2024. Criou-se um espaço para estratégias que dão diferentes graus de prioridade às alternativas de aprofundamento do uso de energia no país ou de reivindicação de maiores rendas do Brasil pelo excedente energético.
A discussão não é trivial porque, embora o recurso natural aproveitado para a geração de energia (potencial hidráulico) seja renovável, o excedente de energia pode ser interpretado como um recurso não renovável, pois é reduzido à medida que o mercado interno de eletricidade do Paraguai cresce. Em outras palavras, aproveitar o “bônus energético” é, na realidade, uma janela de oportunidade no médio prazo. A análise sobre a conveniência das alternativas indica que a estratégia dominante deve ser o uso da energia para o mercado interno; no entanto, as condições para que isso aconteça dependem da existência de uma infraestrutura elétrica adequada e de uma infraestrutura industrial que multiplique o valor econômico da energia, gere empregos e promova a circulação de capital no sistema econômico. Em outras palavras, são necessários investimentos públicos e privados. Portanto, a opção que parece ser a mais razoável é a busca de maiores rendas e o uso dessas rendas para melhorar gradualmente as condições de uso da eletricidade no país. Entretanto, a obtenção de mais receita enfrenta o grande desafio de garantir que o destino da receita seja o mais adequado e que os procedimentos administrativos e o uso dos fundos sejam totalmente transparentes para o público.
A complexidade dos interesses paraguaios e as expectativas do povo paraguaio com relação à revisão do Anexo C são elementos que não estão totalmente alinhados com os interesses do governo federal do Brasil. O governo brasileiro tem manifestado seu interesse em contar com a energia de ITAIPU ao menor custo possível, posição reforçada pelo interesse dos empresários brasileiros que vêem na possibilidade de redução do custo da energia de ITAIPU uma oportunidade de ganhos de produtividade. O governo brasileiro, por sua vez, não descarta totalmente a obtenção de rendas por meio de tarifas mais altas do que o custo, embora suas intenções sejam mais limitadas do que as dos paraguaios, e a principal destinação seria para projetos sociais. Nos últimos anos, e com particular intensidade nos últimos meses, tem havido um difícil ambiente de negociações entre os representantes dos dois países, o que mostra claramente a diferença de suas posições.
A fase de negociação sobre a revisão do Anexo C ainda não foi oficialmente instalada. Em janeiro de 2024, foi realizada uma primeira cúpula de presidentes dos dois países, na qual o Paraguai apresentou seus objetivos de forma muito clara e firme ao governo de Lula da Silva. No discurso presidencial após a reunião, o presidente brasileiro destacou a diferença de posições entre os dois países. O Paraguai quer aumentar a tarifa em busca de rendas, enquanto o Brasil expressou suas intenções de reduzir a tarifa em busca de baixos custos para os consumidores brasileiros. Trata-se de uma negociação conjuntural sobre a tarifa.
É importante não perder de vista a existência de outros elementos na história da ITAIPU, como condições de contratação de energia mais favoráveis para a ANDE e o fato de que a situação atual é prévia a uma negociação que visa a pelo menos 10 anos: a revisão do Anexo C, muito mais complexa e com possibilidades de delinear um caminho de cooperação e integração bilateral, talvez com desdobramentos em âmbito regional, com perspectivas de desenvolvimento sustentável e benefício mútuo no longo prazo. Essa é a visão expressa por ambos os presidentes e poderia resultar em uma negociação que ampliasse o papel da entidade binacional, transformando-a em um motor para o desenvolvimento de ambos os países. O maior desafio está nessa fase, que ainda não chegou.
Autor
Professor e pesquisador da Faculdade Politécnica da Universidade Nacional de Assunção. Doutor (PhD) em Energia, Mestre em História Social das Ciências, B. Sc. e Pós-Graduação em Física pela Universidade de São Paulo, Brasil.