O Peru está no segundo turno, logo depois do primeiro turno onde Pedro Castillo obteve 19% e Keiko Fujimori 13%. A elevada abstenção em Lima, especialmente nas áreas de classe média, marcou uma jornada onde a grande surpresa foi a emergência do professor Pedro Castillo, que liderou uma greve de professores em 2017. É claro que enquanto quase 20% do país vê nele uma mudança, os outros 80% não concordaram. Este resultado eleitoral deixa em evidência a crise de representatividade que o país está passando há mais de 20 anos após as reformas políticas que o transformaram.
As causas
Mark Lilla, autor americano de Regresso Liberal, ressalta que na política existem dispensações. Assim como nos Estados Unidos que Reagan iniciou a dispensação neoliberal, no Peru poderia se dizer que Alberto Fujimori iniciou uma espécie de versão autoritária dessa corrente política e econômica. A versão peruana foi marcada por um pragmatismo que, embora fosse capaz de conter e canalizar alguns problemas e movimentos sociais, fortalecendo aspectos econômicos, teve como contrapartida uma profunda erosão do sistema político e partidário.
No caso de Fujimori, o liberalismo pragmático com o qual ele decidiu e resolveu sua dispensação o levou a furar e destruir definitivamente um sistema que – embora não fosse perfeito – ainda tinha algum sentido. Ele eliminou assim o bicameralismo, que filtrava a Câmara Baixa representativa com pessoas de maior experiência, comprou, com a ajuda de seu assessor Vladimiro Montesinos, as linhas editoriais da mídia, e estabeleceu a ideia de que os partidos políticos eram envoltórios carentes de conteúdo e sem os instrumentos necessários para governar. Ademais, responsabilizou os partidos pelo surgimento do terrorismo.
Ao fechar o Congresso e criar uma nova constituição, Fujimori foi capaz de fazer um país sob medida, que precisava ser dirigido por um presidente autocrático, com conselheiros e operadores na sombra, eleições fraudadas. A narrativa antissistema atingiu um profundo acorde com os eleitores que deixaram a atividade partidária porque, como disse Margaret Thatcher, “não há alternativa”. Fujimori considerou que os “políticos tradicionais” eram ineficazes e que ele era a única alternativa.
As consequências
Depois de Fujimori, Alejandro Toledo, Alan García em um segundo mandato, Ollanta Humala e Pedro Pablo Kuczynski passaram pela mesma constituição. Criada em 1993, tinha a vantagem de afirmar o livre mercado, o que certamente permitiu ao país manter um certo rigor fiscal e crescer de forma razoável, embora com as deficiências de um aparelho estatal inacabado e de baixa qualidade.
Como pano de fundo, nenhum desses presidentes abordou a crise de representação porque assumiram, tacitamente, que não havia alternativa. Por isso, hoje nós, peruanos, chegamos a estas eleições com representantes que não têm agenda e nem raízes, e que lideram partidos que alugam para as eleições.
Enquanto isso, as forças ocultas – embora não tanto – como o tráfico de drogas, a mineração ilegal e os operadores políticos, hoje convertidos em agentes desses interesses, brotam no backoffice dos partidos políticos que são ventres de aluguel. Eles administram rotas para que o dinheiro escondido, produto da corrupção, como o caso da Lava Jato, ou do narcotráfico, possa continuar perpetuando seus interesses. Enquanto isso, os cidadãos permanecem sem uma representação que estruture seus interesses em favor do desenvolvimento da classe média e da verdadeira modernização do país.
Como se isso não fosse suficiente, o modelo de governo agravou sua crise com um Congresso que descobriu que poderia remover presidentes por motivos vagos de “incapacidade moral”, conforme estipulado pela Constituição de 1993. Isto permitiu ao Peru ter quatro presidentes entre 2018 e 2021: Kuczynski, Martín Vizcarra, que foi vice-presidente de Kuczynski, Manuel Merino, que queria assumir em nome do Congresso, constitucionalmente, mas sem legitimidade popular, e Francisco Sagasti, um tecnocrata moderado sem escândalos de corrupção, que atualmente governa em uma espécie de piloto automático.
Cenários futuros
Quer Castillo ou Fujimori ganhem, o Peru enfrenta a possibilidade real de que qualquer presidente possa ser impugnado a qualquer momento depois de uma breve pressão de operadores sombrios ligados ao Fujimorismo, ao aprismo e ao tráfico de drogas. E neste contexto, o cansaço dos cidadãos pode levá-los a aceitar um novo caudilho autoritário que, como aponta o cientista político Steven Levitsky, faz uso dos mecanismos da democracia, de forma limitada, para governar – na forma – um país que prefere o autoritarismo à democracia, na ausência de uma alternativa clara.
Embora o Peru pareça estar mostrando sinais de que o ciclo político está chegando ao fim, desde que Fujimori renunciou por fax do Japão, o país tem vivido em democracia. Entretanto, os fatos indicam que esta continuidade democrática não será mantida se os partidos com representação nacional, que até agora têm sido a única alternativa para governar um Estado, não forem reorganizados novamente. As organizações políticas com boas bases a nível regional, com legitimidade além do dinheiro e que permitam uma gestão eficaz do território nacional fazem falta.
Pedro Castillo foi o único que contava com este tipo de organização. Graças ao aparato partidário do Comitê Nacional para a Reorientação do SUTEP (CONARE), uma facção dissidente do Sindicato Único dos Trabalhadores da Educação do Peru – SUTEP, Castillo conseguiu articular uma plataforma em nível nacional em torno de uma agenda estatista e de reivindicação rural. Este confronto entre o rural e o urbano é uma evidência da profunda fragmentação que a nação andina está enfrentando. Além disso, o fundador do partido de Castillo, Vladimir Cerrón, que foi processado por corrupção após servir como governador regional, declarou inúmeras vezes que a Venezuela lhe parece ser um exemplo e uma democracia, um fato que gerou um alarme razoável.
Independentemente de quem for o próximo presidente, é claro que se a organização partidária não for restabelecida como norma de ação política, em breve teremos outro caudilho autoritário. Não esqueçamos que durante a tentativa fracassada de Manuel Merino de tomar o poder no ano passado, a polícia atirou bolas de gude e chumbo na população de forma totalmente desproporcional, resultando na morte de duas pessoas. Isto fala de traços profundamente autoritários que podem dar origem a lideranças ainda mais perigosas.
*Tradução do espanhol por Maria Isabel Santos Lima
Foto por lamula.pe
Autor
Graduado em Comunicação para o Desenvolvimento pela Pontifícia Universidade Católica do Peru. MBA na Escola de Negócios do Pacífico. Trabalhou como consultor em várias instituições estatais, em agências de comunicação e organizações sem fins lucrativos.