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Por que a vacinação por si só não é a solução?

A pandemia de Covid-19 nos colocou diante de uma complexidade de desafios cujas urgências confrontam o tempo. O tempo da ciência, o tempo da gestão pública, o tempo da gestão individual de nossas carências e das necessidades mais básicas do nosso cotidiano, inclusive o tempo do nosso imediatismo.

A capacidade de produção de uma política pública que se sustente ao longo do tempo depende de diferentes fatores, como coordenação das ações, realização de monitoramento das condições de vida e impactos das ações públicas, produção de conhecimento e informação, constante avaliação dos resultados e, por fim, uma boa comunicação com a população.

Saúde e boa gestão da crise sanitária

Ao definirem o que é saúde, e quais são os comportamentos saudáveis, as políticas de saúde conduzem comportamentos – um verdadeiro controle dos corpos individuais e coletivos. Produzem uma enxurrada de informações, orientações e dados à disposição dos indivíduos (atualmente ao alcance das mãos nos aplicativos dos celulares) para conduzi-los no cuidado de si e do coletivo. Tudo cuidadosamente calculado, planejado e comunicado.

Uma gestão bem-sucedida de uma crise social e sanitária provocada por uma pandemia, passa necessariamente pela capacidade de comunicação dos governos, com produção e disseminação de informação voltada para o esclarecimento e orientação do comportamento das pessoas. Requer objetividade e transmissão de informações precisas.

Desde o início da pandemia de Covid-19, o mundo vem buscando caminhos e alternativas para garantir a normalidade, nem que seja sinalizando com a promessa de um “novo normal”.

Entretanto, buscar a normalidade nos impede de pensar em termos de ruptura. Toda crise é potência para a transformação. Porém, a ruptura que motiva a busca de novas formas de ação, outros parâmetros, novos paradigmas e utopias, também nos mergulha em medo, ansiedade e luto. Paralisa, implorando pelo conhecido. Nos prende na gestão da urgência.

A necessidade de dar garantias de normalidade vem conduzindo discursos políticos, decisões em políticas públicas, debates na mídia e as escolhas de cada um de nós. Em vários países isso se soma a uma gestão pública antidemocrática pautada pelos princípios neoliberais: a urgência do mercado, o apagamento do social, a austeridade fiscal, a manipulação dos medos individuais e coletivos. Monta-se uma impiedosa armadilha coletiva.

O Chile é o país da América Latina que mais avançou na vacinação de seus cidadãos contra a Covid-19.  Entretanto, no último mês, ao atingir cerca de 40% de sua população vacinada com a primeira dose, viu o número de casos da doença explodir, com um recorde que supera o pior momento de 2020. Especialistas em saúde pública apontam para uma má comunicação pelo governo de Sebastián Piñera.    

Ao focar na campanha de vacinação e em seus benefícios, e ao mesmo tempo relaxar restrições de circulação, permitindo a reabertura de escolas e shopping centers, o governo incentivou a retomada da rotina, potencializando a circulação do vírus, a proliferação de novas cepas e o contágio. Como resultado, viu-se uma explosão na contaminação e nas taxas de ocupação de leitos de UTIs, um esgotamento das equipes e profissionais de saúde, e uma transformação no perfil de seus doentes: estão cada vez mais jovens.

Se antes os leitos de UTI eram ocupados por idosos e pessoas dos grupos de risco, o vírus encontrou seu caminho entre os que agora não apresentam resistência imunológica: adultos jovens. Apesar do avanço da vacinação nos grupos de risco, a letalidade segue a mesma, pois o vírus só migrou e se adaptou a um novo grupo. Adicionalmente, por ser mais jovem, este grupo é composto por pessoas que passam mais tempo lutando pela vida quando a doença se agrava. Com isso, ocupam os leitos de UTI por um tempo muito maior, mesmo quando acabam evoluindo a óbito. Em suma, o governo passou o recado errado, e as pessoas ansiosas pela normalidade não pensaram duas vezes para incorporá-lo.

A situação do Brasil para além da vacinação

Vacina tornou-se palavra de ordem no Brasil. Os esforços e a comunicação dos governos voltaram-se para a vacinação, que ganha ares de passaporte para o normal. Porém, a isso se soma o “abre e fecha” de escolas, comércio, áreas de lazer, bares e restaurantes. Um dia as atividades ao ar livre estão proibidas, na semana seguinte são permitidas apenas individualmente, na outra em grupo. Praias fecham, mas bares e restaurantes abrem ao público. País afora, o que vemos é um vai e vem de recomendações disparatadas a partir de lógicas locais e fragmentadas, todas voltadas para o esforço de manter a rotina e não desagradar os interesses econômicos mais poderosos. E sem qualquer coordenação centralizada.

Na mídia, discutem-se quantidade de leitos e aberturas de vagas de UTI como se fossem um recurso infinito, independente de orçamento ou de recursos humanos. Conforme aumenta a curva de casos, o gestor aumenta o número de leitos. A taxa de ocupação de leitos é um dos principais indicadores adotados para a decretação das “fases” que indicam a gravidade da pandemia que cada município atravessa (ocupação de leitos, taxa de casos e mortalidade).

Indicadores que passaram a pautar nosso cotidiano, quando as taxas sobem aumentam as restrições, quando descem se relaxam as restrições. Pior, esse vai e vem dos dados e das decisões parece nos conferir uma frágil, porém necessária sensação de previsibilidade e de controle. Afinal, as decisões são tomadas com orientações técnicas embasadas por monitoramento de dados. E as pessoas entendem o recado: se bares, restaurantes, shoppings, escolas… estão abertos, então posso frequentá-los. Uma míope gestão dos riscos voltada para a normalização e ditada pelas urgências do mercado.

Estamos diante de decisões tomadas a partir de parâmetros “fora do lugar”, orientadas por ideias e valores que não são capazes de dar uma resposta à crise que estamos vivendo, estabelecendo uma gestão de políticas públicas que pode bem ser definida pela imagem do cachorro correndo atrás do próprio rabo.

Enquanto a comunicação sobre os riscos da Covid-19 e as orientações de prevenção e de comportamento para evitar transmissão e contágio não forem claras, e prevalecerem as ações voltadas para o retorno a uma “vida normal” que nunca virá, a gestão pública se resumirá à gestão das urgências impostas pela fila da morte nos leitos hospitalares – de escalada imprevisível diante de recursos finitos. Um dia precisaremos de leitos, no outro de oxigênio, depois de sedativos, e amanhã de um incremento na produção de caixões.

 Para além do risco da normalização da escalada da morte, põe-se em jogo a credibilidade da vacinação. A armadilha está em fazer crer que a vacina é a grande saída para uma crise que requer muito mais do que ações e esforços realizados a partir de uma lógica de urgência. A vacina é somente parte da solução. Deveria ser acompanhada por medidas de distanciamento, um longo período de isolamento social, utilização de máscaras, testagem em massa e monitoramento dos doentes. Acima de tudo, pela aceitação de que houve uma ruptura definitiva com a vida que vivíamos.

Foto de Luis Zafra no Foter.com

Autor

Cientista social. Professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro da Universidade Cândido Mendes (IUPERJ / UCAM). Doutora em Ciências Sociais pela Univ. Estadual de Campinas (UNICAMP).

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