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A nova (des)ordem mundial, segundo Putin

Em sua tentativa de explicar a invasão da Rússia à Ucrânia no contexto da reconfiguração do tabuleiro geopolítico global, Vladimir Putin se mostra não apenas como um “global player” (jogador protagonista da política mundial), mas também como um “geopolitical reader” e “mapmaker”: nos conta uma contra-narrativa e nos desenha um mapa alternativo do mundo para o qual estamos nos dirigindo. E o papel que ele atribui a seu país nessa reconfiguração.

O fez no recente Fórum de São Petersburgo, a versão russa do Fórum de Davos, com um discurso que adota e inverte o esquema binário de enfrentamento entre um “nós” e um “eles”, que divide o mundo entre o Ocidente e o Oriente, assimilados a uma luta do “bem” contra o “mal”. Quatro meses após o início da intervenção militar russa para anexar o território ucraniano, reiterou isto na cúpula dos BRICS em Moscou, em 22 de junho, onde propôs a criação de uma moeda para os intercâmbios internacionais alternativa ao dólar. 

Diante da associação que integra com Brasil, Índia, China e África do Sul, Putin assinalou que a Rússia quer elaborar com seus sócios “mecanismos alternativos de transferências internacionais” e uma “moeda internacional de reserva” para reduzir a dependência do dólar e do euro. E foi mais específico: “O sistema russo de mensagens financeiras está aberto para conexão com os bancos dos países BRICS. O sistema russo de pagamento MIR está ampliando sua presença. Estamos explorando a possibilidade de criar uma moeda de reserva internacional com base na cesta de moedas dos BRICS”.

Putin denunciou “a aplicação permanente de novas sanções de motivação política” que contradizem “o bom senso e a lógica econômica elementar”. Neste contexto, ele explicou que a Rússia está “redirecionando ativamente seus fluxos comerciais e contatos econômicos estrangeiros para parceiros internacionais confiáveis, sobretudo para os países BRICS”.

Estão em andamento “negociações sobre a abertura de cadeias de comércios indianas na Rússia e o aumento da participação dos automóveis chineses (…) no mercado russo”, detalhou. “As entregas de petróleo russo na China e na Índia estão aumentando. A cooperação agrícola está se desenvolvendo de forma dinâmica”, assim como a exportação de fertilizantes russos para os países do grupo, segundo o mandatário. 

A Rússia está reagindo em busca de recuperar seu “destino manifesto” como uma potência global, respondendo à pretensão do “Ocidente” – os EUA e a UE – de seguir marcando o ritmo da política mundial como se o mundo não tivesse mudado nas últimas décadas. E o que mudou foi – nesta visão – a transição para uma multipolaridade, entendida à maneira dos antigos impérios em disputa: um mundo dividido em grandes blocos, com seus centros de gravitação, áreas circundantes e esferas de influência, suas culturas e modos de organizar suas economias, suas instituições e suas relações exteriores.

Assim disse Putin, explicitamente, no Fórum de São Petersburgo: “Os Estados Unidos acreditam que são o centro do mundo, mas a era do mundo unipolar acabou. Nada voltará a ser como antes na política mundial”. É como se não se dessem conta”, continuou, “que nas últimas décadas novos e poderosos centros de poder se formaram no planeta e estão ficando cada vez mais fortes”. “Acreditam que a hegemonia mundial e econômica do Ocidente é eterna, mas não, nada é (…) Seus colegas no Ocidente tentam contrariar o curso da história, pensando em termos do século passado”. E então afirmou: “Parece que as elites governantes de alguns países ocidentais vivem nesse mundo ilusório, não querem notar coisas óbvias, mas se agarram obstinadamente à sombra do passado”.

O presidente russo não se equivoca quando diz o seguinte: “Estamos falando de mudanças verdadeiramente revolucionárias e tectônicas na geopolítica, na economia global, na esfera tecnológica, em todo o sistema de relações internacionais”. Ele sublinha isto lembrando que “há um ano e meio atrás, falando no Fórum de Davos, foi novamente enfatizado que a era da ordem mundial unipolar tinha acabado. (Esta era) acabou apesar de todas as tentativas de reavivá-la e mantê-la a todo custo”.

Mas acontece que o mundo que Putin descreve não é o do século XX, entretanto, se parece mais ao do século XIX que o do XXI: guerras interimperiais e “pax armadas” estabelecidas pelos vencedores e impostas aos povos submetidos. Como Claudio Ingerflom explica em seu excelente livro El dominio del amo (Fondo de Cultura Económica, 2022), a Ucrânia seria apenas uma peça do grande quebra-cabeça eurasiático sobre o qual o líder russo pretende impor sua hegemonia, a missão do Estado russo no mundo.

O mapa que desenha Putin omite o legado do século XX, a existência de um sistema internacional de instituições e regras que estão acima dos Estados e impõem limites e responsabilidades a eles, independentemente de seu tamanho e poder. O mesmo que sancionou a Rússia – votação da Assembleia Geral da ONU – por sua invasão à Ucrânia. Como em um filme “ao contrário”, não apenas desconhece a natureza da Ucrânia como país soberano, mas também todo o processo que se seguiu à desintegração da União Soviética.

E omite a realidade do século XXI: a multipolaridade também supõe a interconexão global entre os seres humanos, a diversidade intercultural e o conhecimento de realidades distantes que nos chegam em tempo real e são difíceis de silenciar, bloquear, encobrir ou negar, como nos tempos dos czares, imperadores e ditadores totalitários. Os direitos humanos – seu reconhecimento e respeito, e também a condenação de seu descaso e a punição de seus transgressores – são de alcance universal.

A América Latina, que sofreu durante o século XX por ser o cenário de disputas, abertas ou encobertas, entre as grandes potências, sabe por experiência própria o quanto esta configuração geopolítica afeta a estabilidade das democracias. Por esta razão, nossos países enfrentam, de diferentes maneiras, um mesmo dilema: como evitar um envolvimento imposto pelos “jogadores maiores”, sabendo, ao mesmo tempo, que não se pode permanecer à margem de um conflito que tem alcance global devido a seus múltiplos impactos e consequências, diretas e indiretas, sobre a vida dos povos em escala local, nacional e regional.

*Tradução do espanhol por Giulia Gaspar

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Cientista político e jornalista. Editor-chefe da seção Opinião do jornal Clarín. Prof. da Univ. Nacional de Tres de Febrero, da Univ. Argentina da Empresa (UADE) e de FLACSO-Argentina. Autor de "Detrás de Perón"(2013) e "Braden o Perón. La historia oculta"(2011).

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