Se a Venezuela fosse um país democrático normal (ainda que com os costumeiros traços latino-americanos de instituições quebradiças, redes de poder opacas e pobreza amplamente difundida), seria possível aguardar a próxima eleição com a esperança de que Nicolás Maduro desapareça nas brumas de onde surgiu. Mas a Venezuela não é um país normal e, se Maduro conseguir consolidar com mais firmeza seus vínculos com o exército e com uma burocracia fortemente ideológica, o risco é de que dentro de 60 anos (como acontece em Cuba desde 1959), seus descendentes ainda estejam no poder, exaltando como façanha de resistência ao imperialismo uma mistura de pobreza distribuída (mais ou menos) equitativamente, partido único e bocas rigorosamente seladas. É daí que surge a pressão para que o regime inaugurado por Hugo Chávez seja desmontado antes que se petrifique e elimine toda possibilidade de reconstruir uma normalidade democrática que, desta vez, demonstre maior atenção ao social do que foi o caso nos 40 anos anteriores à chegada de Chávez ao poder. O que está em jogo no momento são muitas décadas de futuro.
O ex-guerrilheiro Teodoro Petkoff descreveu o regime de Chávez como uma confluência de militarismo nacionalista e correntes distintas de marxismo-leninismo, em forma de um governo essencialmente personalista, sob a efígie glorificada de Simón Bolívar. Um governo, cabe acrescentar, no qual apesar do nacionalismo, do marxismo-leninismo e dos mitos patrióticos, as decisões cabiam a uma só pessoa, capaz de anular todos os demais poderes do Estado ao seu redor. Terra (institucionalmente) arrasada em torno do Palácio de Miraflores. Um retrocesso secular que alguém teve a hilariante ideia de batizar de “socialismo do século 21”.
Um país quebrado, em meio a proclamações revolucionárias e alegres fanfarras patrióticas. Nem mesmo o Partido Revolucionário Institucional mexicano chegou a tanto – e eles foram bem longe”
Já se passam duas décadas desde que as Missões em Favor dos Pobres, Empresas de Produção Social e, enfim, Comunas começaram a representar uma fuga ininterrupta rumo ao futuro, sem dinamismo endógeno e em geral impulsionadas pelo objetivo de capturar votos na próxima eleição. Uma opereta autoritária que, de 2014 para cá, queimou cerca de metade do Produto Interno Bruto (PIB) venezuelano, e resultou no ressurgimento de ondas de fome imensas, índices de criminalidade pavorosos, e hospitais nos quais pacientes morrem por enfermidades curáveis. Desconsiderando a infinita criatividade léxica dos governantes venezuelanos, nem socialismo, nem século 21, nem pudor ou o mínimo sentido de responsabilidade social. Um país quebrado, em meio a proclamações revolucionárias e alegres fanfarras patrióticas. Nem mesmo o Partido Revolucionário Institucional mexicano chegou a tanto – e eles foram bem longe.
Tratemos agora de um livrinho escrito 60 anos atrás por um intelectual venezuelano que foi diplomata, romancista e professor universitário: Mariano Picón Salas (1901-1965). O livrinho em questão se chama “Regresso de Três Mundos” e, apesar do tempo transcorrido, ainda tem um frescor que permite iluminar de modo inédito a frenética história da Venezuela (e não só).
Picón Salas descreve Bolívar como um Dom Quixote “febril e insone que sai em campo aberto a combater toda a Idade Média espanhola e toda a mágica proto-história dos impérios indígenas desfeitos que persistia no imenso território indo-americano”. Ele venceu, e de alguma forma também perdeu, uma guerra desigual na qual o passado estava fortemente enraizado no presente que pretendia superá-lo.
E, quase simbolicamente, se pode dizer que em Ayacucho, quando os espanhóis terminaram derrotados, muitos dos heróis que participaram da batalha voltaram às suas pátrias – ao norte e ao sul – para estabelecer o sonho de Bolívar, sua hegemonia como caudilhos. Há “gauchos” que voltaram à Argentina e poucos anos mais tarde acompanharam Dom Juan Manuel de Rosas, para impor sua restauração a golpes de lança; “llaneros” que conspiraram contra a república venezuelana de Páez; e “cholos” geniais como Santa Cruz, que aspirava a se converter, nos frígidos altiplanos, em um novo Manco Capac.
Os “profetas furiosos” de que fala Picón Salas eram “condottieri” de uma modernidade que já nasceu enferma, pela debilidade de suas instituições e pela profundidade de suas fraturas sociais, Uma história que não termina: o “condottiero”, em sua armadura reluzente, ressurge periodicamente como pesadelo, para substituir uma democracia débil por um regime decisivo, supostamente eficaz e infalivelmente autoritário. Uma promessa que desde o século 19 assume, e essa é sua outra desgraça, traços positivistas. Tudo é jogado em um terreno de racionalidade abstrata no qual a ideologia se disfarça por trás de números e esquemas que encarnam profecias radiantes. Voltemos a Picón Salas: “Conheci nesses anos juvenis [os do autor] pessoas que se prepararam muito para o dia do triunfo ou do apocalipse, que previram todos os esquemas, todos os cálculos, todos os planos, para que a nova sociedade saísse de suas mãos como um vestido bem feito”. Retornando aos clássicos, é como Atena, que nasce perfeita, adulta e armada, da cabeça de seu pai, Zeus.
As gerações passam e, como um destino malévolo, a história se repete. Alguém sempre termina por acreditar que as sociedades são maquinarias cujas peças podem ser reorganizadas sem reconhecer os vínculos do tempo histórico, do contexto mundial ou das culturas pré-existentes. Como se cada sociedade existisse em um vácuo cósmico. O chavismo foi isso: um voluntarismo vaidoso e incompetente, alimentado, para causar desgraça ainda maior, por milhões de barris de petróleo. Uma forma de anular o mundo em nome de um ego tão primário quanto desmedido; a crença firme de que o mundo se move de acordo com os bons desejos de quem o governa, onde o bem-estar social oferecido e a perpetuação do poder do caudilho convivem. Rei sábio, pai da pátria, guia moral e comandante em chefe convertidos em um redemoinho no qual a pulsão da eternidade do líder é a única racionalidade possível.
Picón Salas nos ajuda a compreender que Chávez e o chavismo não são uma enfermidade imprevista na história venezuelana (e latino-americana), mas sim uma recorrência por meio da qual países inteiros retrocedem ao século 19 em nome do futuro, o que leva alguns de nós a questionar quando terminará essa desgraça, na qual o desejo de progresso amiúde tem o efeito contrário. Isso tudo tem algo a ver com a realidade atual do México? A resposta óbvia é não. Nada a ver, exceto por uma advertência e uma singular analogia. A advertência é que economias viáveis (pela eficácia e bem-estar que possam produzir) não são construídas à margem do mundo. Romper todos os vínculos com o mundo (tentação compreensível, sobretudo quando prevalecem personagens como Trump, Putin ou Xi Jinping), em nome do combate ao neoliberalismo, pode parecer atraente mas é um caminho falso, que conduz a lugar nenhum. Os problemas econômicos (e sociais) do México certamente começaram muito antes do neoliberalismo, o que o atual presidente do México tende a esquecer. E isso implica o risco de que dispare suas flechas na direção errada. O que tem a ver um antiquado presidencialismo absoluto, um sistema corporativista de líderes sociais ligados ao Estado e a inconsistência institucional com o neoliberalismo?
A analogia é que Chávez todos os domingos comandava seu programa “Aló Presidente”, em cadeia nacional, tagarelando sobre o imperialismo, sobre seus filhos, e sobre tudo mais que lhe ocorresse. O presidente do México reúne os jornalistas todas as manhãs às 7h para entrevistas coletivas. Ainda que o estilo seja outro, a pulsão de assumir o papel principal é a mesma, e não faz bem algum ao país. Seria melhor que o presidente se afastasse do debate cotidiano, a menos que aceite o desgaste inevitável que ele causa, e a menos que queira correr o risco de improvisar e de fazer com que os cidadãos creiam que ele sozinho, sem ministros, sem assessores, sem funcionários qualificados, dirige o país. Uma mensagem que pode fazer bem ao seu ego mas vai em direção contrária à da construção de instituições cada vez mais ricas, de competências interdependentes e de centros decisórios autônomos, reciprocamente controlados. O México tem o formidável desafio de construir instituições críveis e eficazes e, quanto a isso, não fica claro para que serve um presidente que faz declarações a cada manhã.
Autor
Professor e pesquisador do CIDE (México). Seus últimos livros são: "La salida del atraso" (2020) e "Un eterno comienzo (2017)."