Há tempos o filósofo e pensador brasileiro Roberto Mangabeira Unger vem insistindo, desde sua cátedra na Universidade de Harvard, sem muita repercussão no Brasil, que “o problema fundamental do nosso país não é a desigualdade – ainda que este seja um grande problema – mas a mediocridade”. “Temos os instrumentos para sair da mediocridade, mas não temos o projeto”, diz o eminente pensador. Olhando mais atentamente para a evolução do nosso presidencialismo, vemos que a mediocridade é seu ethos, além de modus operandi.
Desde que o Partido dos Trabalhadores chegou ao poder, tentando conciliar sua histórica estratégia classista com a estratégia assistencialista –onde a revolução se restringia a três refeições na mesa do trabalhador –, descobriu-se a fórmula do consenso político no Programa Bolsa Família, onde a transformação social não precisava mais de qualquer efetiva mudança na ordem dominante, como se supunha, anteriormente, no Programa Fome Zero. Bastava apenas “colocar os pobres no orçamento”, mantendo privilégios históricos em nome da governabilidade, para que se desse o milagre da multiplicação dos votos; preservando-se, naturalmente, a retórica engajada e radical.
O estupendo sucesso político-eleitoral da fórmula tornou-a “o programa máximo” do lulopetismo, sem que a esquerda partidária deixasse de considerá-la “o programa mínimo”. Enquanto Lula bradava nos palanques, sob aplausos internacionais, que a grande tarefa do(s) seu(s) governo(s) seria levar as três refeições à mesa dos pobres, a esquerda petista usou a alquimia política para alavancar a polarização política (“nós e eles”) em busca do “governo popular.”
Tudo parecia ir bem até que uma revolta popular, em 2013, e um desgoverno (Dilma) abriram caminho para outro impeachment (2016) e um vácuo de poder que o centro democrático não podia ocupar em função de muitos motivos que não cabem neste texto. O freio de arrumação da interinidade do governo Temer não foi capaz de evitar a tournant da sociedade à direita, interpelada resolutamente pelo bolsonarismo.
A volta ao poder do PT, sob a capa da “frente ampla”, se valendo da impotência de sempre do centro democrático em sua entropia político-intelectual, se fez inevitável. Mas tal frente apenas abriu caminho para mais um governo lulopetista e seu histórico despreparo para o enfrentamento dos grandes desafios nacionais, não obstante seu forte apelo popular. Um paradoxo, em termos, que reforça e renova o pacto da mediocridade.
O problema da fórmula outrora imbatível é que a estratégia assistencialista vem perdendo tração social nas camadas populares, crescentemente em busca de melhor inserção no mercado de oportunidades, muito influenciadas pelas igrejas evangélicas preconizadoras do individualismo da “teologia da prosperidade”. A ideia de sujeitos dependentes do “Senhor Estado” restou preponderante apenas no Nordeste do Brasil – não por acaso bastião das velhas tradições patrimoniais. O PT deitou suas novas raízes lá, na esperança de reeditar a velha aliança “operário-camponesa”, mas essa fórmula perdeu apelo no proletariado urbano, que parece ter perdido a fé em qualquer progresso pelo caminho da “igualdade na pobreza”.
O Centrão, por sua vez, na esteira do fracasso do bolsonarismo e da flexibilidade programática dos partidos políticos, consolidou seu protagonismo. Sob a liderança do presidente da Câmara de Deputados, Arthur Lira, o Centrão deixou de ser um mero balcão de negócios para se transformar num verdadeiro “partido moderador”, disposto a apoiar o governo de plantão mediante cargos, mas agora sem abrir mão de sua visão de mundo liberal-patrimonialista, portanto, medíocre.
Isto não tem impedido que reformas estruturantes de matiz racionalizante, sob a condução do ministro da Economia Fernando Haddad, estejam sendo implementadas. O problema é que neste caminho sofre assédio contumaz dos setores mais à esquerda do próprio PT, tornando a vida do governo ainda mais difícil e ao sabor do Centrão.
A possibilidade do desenvolvimento democrático do Brasil tem esbarrado, até aqui, em nulidades políticas, capazes de produzir forte mobilização social, mas incapazes de assumir papel dirigente, ou seja, conduzir o país à emancipação econômica y social. Esperava-se que o governo Lula III, depois do desgoverno bolsonarista, funcionasse como um governo tampão, a caminho dessa emancipação, mas seu pendor demagógico em meio à ausência de lideranças alternativas pode comprometer a tarefa, como também ocorreu com o governo interino de Michel Temer.
O PT não exerce qualquer papel dirigente positivo no interior do atual governo ou fora dele. Muito ao contrário, alimenta a dilaceração da frente ampla que o respalda, na esperança de exercer uma hegemonia restrita aos seus membros.
A esquerda brasileira, marcada pelo viés da mediocridade e obcecada pelo passado, que nunca compreendeu, se equilibra na vã expectativa de uma transformação utópica. A reconstrução democrática do país, todavia, passa por outros caminhos, a exigir clareza, capacidade crítica e coragem, das lideranças políticas e sociais. Qualidades escassamente percebidas entre boa parte das atuais lideranças brasileiras.Resta-nos aguardar que os tempos difíceis por vir despertem os espíritos bem apetrechados, na situação e na oposição, capazes de reencontrar o caminho do desenvolvimento em meio às novas possibilidades e desafios da reconfiguração internacional, cujo horizonte é sinistro.
Autor
Cientista político. Professor de Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro - UENF (Brasil). Doutor em História Contemporânea pela Univ. Federal Fluminense (UFF) e Mestre em Ciência Política pela Unicamp.