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Migrantes no Brasil se mobilizam por políticas de saúde

O papel das mobilizações tem sido importante para impulsionar o desenvolvimento de políticas de saúde para as populações migrantes no Brasil, o que, por sua vez, também beneficia os nacionais.

O Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro é um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo, cobrindo mais de 80% da população residente no território nacional. Tornado universal em 1988 após uma década e meia de mobilização do Movimento pela Reforma Sanitária Brasileira (MRSB), ele se estrutura sobre os seguintes pilares paradigmáticos: a universalidade do acesso e do atendimento – independente, inclusive, da situação documental ou migratória -, a integralidade das pessoas atendidas que enseja abordagens terapêuticas abrangentes e considerativas dos componentes sociais, culturais, econômicos, étnico-raciais, e outros que determinam as experiências de saúde e doença, e a equidade das políticas e ações de saúde, buscando prover cuidado em saúde a cada indivíduo, grupo ou território na medida de suas necessidades.

Também é pilar paradigmático do SUS a participação da comunidade na elaboração das políticas de saúde – o próprio SUS surge das deliberações de um fórum participativo, a 8ª Conferência Nacional de Saúde. Assim, os serviços públicos de saúde – por meio dos conselhos gestores das unidades de saúde – e as políticas públicas de saúde – por meio dos conselhos municipais, estaduais e nacional de saúde – devem abrir-se à participação e fiscalização de seus usuários, que poderão ajudar a decidir, junto a trabalhadores e gestores, sobre o orçamento, ações e temas prioritários, entre outras questões relevantes a cada contexto.

A pandemia foi e tem sido uma catástrofe de proporções gigantescas globalmente. Atribuir este fato ao aparecimento do SARS-CoV-2, no entanto, é ignorar as configurações das assimetrias globais, regionais e locais de poder. No Brasil, por exemplo, a pandemia foi precedida pelo enfraquecimento e o desfinanciamento sistemático, iniciado em 2016, dos sistemas de proteção social, com o estabelecimento de mecanismos de contenção do crescimento do gasto público e reformas neoliberais que feriram em especial as garantias trabalhistas, as políticas de saúde, de assistência social e a previdência social.

Se a pandemia de Covid-19 representou, por um lado, o culminar das consequências da austeridade econômica neoliberal sobre a proteção social durante a catástrofe – um vislumbre de como as respostas às catástrofes do porvir estão sendo preparadas -, por outro, ela também catalisou a articulação política e a resistência de muitos grupos historicamente marginalizados e vulnerabilizados. 

Mobilizações de migrantes

Esse foi o caso dos migrantes e de suas mobilizações demandando políticas públicas de saúde específicas durante a pandemia no Brasil. Entre 2021 e 2023, ocorreram, no Brasil, dois eventos de participação popular das populações migrantes na elaboração de políticas públicas. O primeiro foi a Plenária Nacional Saúde e Migração, em 2021, que mobilizou quase 400 participantes de 19 nacionalidades e residentes em todas as regiões do país. Este evento, primeiro de seu tipo na história brasileira, produziu 172 propostas para o atendimento de migrantes no SUS, posteriormente consolidadas em 37 diretrizes. Ao fim da Plenária, também foi criada a Frente Nacional pela Saúde de Migrantes (FENAMI).

Em 2023, como etapa preparatória da 17ª Conferência Nacional de Saúde, ocorreu, também de maneira inédita, a 1ª Conferência Nacional Livre de Saúde das Populações Migrantes, com uma comissão organizadora coordenada pela FENAMI. Realizada de modo híbrido, ela contou com 876 participantes distribuídos em 29 polos presenciais organizados em 19 cidades por todo o Brasil, ou participando de modo online – tornando-se assim a 11ª maior conferência livre entre as 99 organizadas no ciclo da 17ª CNS. Foram aprovadas 4 diretrizes e 20 propostas que colocavam em relevo, entre outras coisas, a necessidade da criação de uma Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Populações Migrantes, Refugiadas e Apátridas.

Essa conferência livre também elegeu, de maneira inédita, uma delegação para participar da 17ª Conferência Nacional de Saúde – fórum de participação social responsável por definir as propostas e diretrizes a serem consideradas na elaboração do Plano Nacional de Saúde. Em 17 de agosto de 2023, o Conselho Nacional de Saúde publicou a Resolução nº 719, com o objetivo de publicizar as diretrizes e propostas aprovadas pela 17ª CNS. Essa resolução trouxe, também de maneira inédita, 4 diretrizes e 24 propostas com menção às populações migrantes, refugiadas e apátridas – foram, ao total, 51 menções a essas populações. Infelizmente, as populações migrantes não foram mencionadas na Resolução nº 715 de 20 de julho de 2023 deste mesmo Conselho, não sendo incluídas nas orientações estratégicas do Plano Nacional de Saúde e do Plano Plurianual 2024-2027.

Essas mobilizações ainda produziram mais efeitos. Em primeiro lugar, elas tornaram a efetivação do direito à saúde das populações migrantes no Brasil uma pauta politicamente relevante, trazendo uma abundância de relatos em primeira pessoa das experiências com o SUS, e da miríade de outras dimensões da vida que produzem uma diversidade imensa de concepções de saúde. A partir dessas e de outras mobilizações – como os mutirões de vacinação organizados pela iniciativa de movimentos migrantes nas periferias da cidade de São Paulo -, foram criados grupos para pensar políticas de saúde e ações de equidade para as populações migrantes em estados como Goiás, e municípios como São Paulo.

Uma política nacional

Já a produção de uma proposta de Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Populações Migrantes, Refugiadas e Apátridas iniciou-se em 2022, foi suspensa, e retomada no governo Lula. No fim do mês de junho de 2023, o Ministério da Saúde publicou a Portaria nº 763, que institui um Grupo de Trabalho, com funcionamento de um ano, responsável por, entre outras coisas, formular a proposta da Política.

A portaria de estabelecimento do GT não previa a participação da sociedade civil em igualdade com membros do governo. Além disso, colocou a coordenação do Grupo sob responsabilidade da Secretaria de Vigilância e Saúde Ambiental – privilegiando, ainda que implicitamente, a associação, comum em determinados trabalhos científicos e em políticas de saúde não orientadas pela perspectiva da garantia de direitos, entre migração e risco sanitário.

Após pressão, o governo concordou em garantir a participação da sociedade civil, e oficinas serão organizadas para ampliar o debate sobre a Política. No entanto, ainda não está certo se a vigência do Grupo, previsto para encerrar-se em junho próximo, será renovada, se a participação da sociedade civil será oficializada, e se as outras atividades propostas em sua portaria de instalação, como a produção de um documento com mapeamento e diagnóstico nacional da saúde das populações migrantes, refugiadas e apátridas, estão sendo realizadas.

Assim, é preciso destacar o papel das mobilizações em questão na produção de momentum para a elaboração de políticas de saúde para as populações migrantes no país – que, é bom que se diga, beneficiam também aos nacionais. Elas representam uma demanda pela reconfiguração das relações de poder que se torna mais relevante em especial a partir da última década – entre outros motivos, em razão do aumento do número de migrantes racializados originários no sul global residindo de maneira temporária ou permanente no Brasil. Proibidos de se manifestar ou de se organizar politicamente até 2017, agora demandam, com justiça e em uníssono, ainda que nas mais variadas línguas: “nada sobre nós sem nós!”

Autor

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Professor da Universidade de Brasília. Doutor e mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de São Carlos. Membro da Fundação Wenner-Gren e ex-membro da Plataforma de Ciências Sociais em Ação Humanitária da Universidade de Sussex. Fundador e membro da coordenação da Frente Nacional de Saúde do Migrante (FENAMI).

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