Em uma sociedade mais conectada do que nunca, será que todos nós seremos alfabetizados digitalmente? No Brasil, onde os pagamentos em massa são feitos por meio do PIX, as consultas médicas à distância são cada vez mais populares, onde o número de trabalhadores de aplicativos, como entregadores e motoristas, só aumenta e onde o uso de ferramentas de Inteligência Artificial está crescendo, esse parece ser o próximo destino no horizonte tecnológico.
No entanto, de acordo com uma pesquisa realizada pelo Instituto Market Analysis Brasil, 36% da população nunca ouviu falar da ferramenta de Inteligência Artificial (IA) mais popular atualmente, o ChatGPT. Além disso, 40% dos brasileiros não sentem a necessidade de ferramentas de IA em suas vidas diárias. Entre eles, 53% têm pouca ou nenhuma escolaridade e 36% pertencem a classes sociais de baixa renda. Ainda de acordo com dados da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD Contínua, 24 milhões de brasileiros nunca acessaram a Internet. A maioria deles se encontra em áreas rurais, nas regiões Norte e Nordeste do país. Esses grupos são identificados como “analfabetos digitais”, pois não estão familiarizados com as tecnologias de inteligência artificial ou mesmo com a internet.
Em um cenário tecnológico em que cada vez mais se discute a criação de dados sintéticos por meio da Inteligência Artificial Generativa e sua utilização em estudos de opinião pública, qual o impacto desse importante setor da população digitalmente excluída? Seria o digital capaz de prever, simular ou mesmo influenciar os comportamentos e as opiniões daqueles que só participam do mundo analógico?
Um experimento recente do estudo World Values Survey (WVS), realizado no Brasil pelos professores Henrique de Castro e Daniel Capistrano, demonstrou a dificuldade dos algoritmos de IA em criar dados sintéticos que representem a população com menos instrução e pertencente a classes sociais mais baixas. Assim, vemos que é justamente a população com menos instrução e renda que mais desafia os recursos preditivos da IA. Os chamados “analfabetos digitais” são, portanto, também aqueles que são “indomados” pela tecnologia, imprevisíveis para os dados sintéticos.
As implicações desse fenômeno são profundas e, de certa forma, paradoxais. Em uma sociedade cada vez mais monitorada e em que se tenta controlar e moldar opiniões por meio de preferências antecipadas ou artificialmente construídas por meio de algoritmos de IA, é justamente entre as pessoas com menos escolaridade e renda que a influência dessas tecnologias encontra maior resistência. Esses indivíduos, geralmente excluídos das amostras de pesquisa e menos presentes nas plataformas digitais, permanecem mais “invisíveis” para os algoritmos e desafiam a capacidade preditiva das pesquisas.
À medida que a tecnologia avança e se torna mais sofisticada, aqueles que estão à margem desse avanço podem se tornar verdadeiros agentes invisíveis de mudança, influenciando decisivamente a direção política e social do país, especialmente em uma sociedade polarizada como a brasileira, onde 2 milhões de votos decidiram a última disputa presidencial.
Entretanto, embora menos influenciados pela tecnologia, esses grupos não estão imunes à manipulação. Outros meios tradicionais de influência, como a televisão, líderes religiosos e líderes locais, ainda exercem influência significativa e podem moldar opiniões de forma eficaz, muitas vezes compensando a falta de impacto direto dos meios digitais.
Um dos vetores de influência a ser considerado hoje é também a Internet por meio da televisão. A televisão é atualmente o segundo meio de acesso dos brasileiros à Internet (47,5% a utilizam), ultrapassando, pela primeira vez, o computador pessoal (35,5% a utilizam). Com o surgimento de serviços de streaming, canais do YouTube e podcasts, surge a pergunta: esses conteúdos digitais, assistidos na televisão, são os formadores de opinião de uma sociedade com uma alfabetização digital parcial? Essa pergunta é fundamental para entender a dinâmica do consumo de informações e da formação de opiniões em diferentes segmentos da população.
É necessário ampliar o debate sobre vigilância e controle social por meio da IA. A ideia de que é possível um monitoramento abrangente da sociedade pode ser ilusória se não considerarmos as limitações inerentes ao alcance da tecnologia. A resistência natural dos segmentos menos conectados pode servir como um lembrete de que a diversidade e a complexidade humanas sempre encontrarão maneiras de se manifestar, mesmo em um mundo cada vez mais digitalizado. Esse aspecto deveria ser fundamental em qualquer discussão sobre o futuro da tecnologia e da sociedade.
Essa situação abre espaço para questionar o papel da tecnologia em nossa sociedade e a necessidade de políticas inclusivas. É essencial que as políticas públicas e privadas sobre IA considerem esses grupos marginalizados, não apenas como um desafio a ser superado, mas como uma oportunidade para uma abordagem mais equitativa e inclusiva. A inclusão digital deve ser vista como um direito fundamental, necessário para a participação plena na sociedade contemporânea.
Para que a inclusão digital se torne uma realidade integral, é necessário um esforço concentrado que vá além da mera disponibilidade de tecnologia. É imperativo um investimento significativo em infraestrutura, educação e formação. As áreas rurais e as regiões Norte e Nordeste do Brasil, que sofrem o maior déficit de conectividade, precisam de iniciativas específicas que incentivem a expansão da rede de Internet de alta velocidade. Além disso, a educação digital deve ser integrada aos currículos escolares desde as séries iniciais, garantindo que as novas gerações desenvolvam habilidades tecnológicas desde cedo. Os programas de alfabetização digital para adultos também são essenciais para que a população possa usar as ferramentas digitais de forma efetiva.
Além de promover uma sociedade mais igualitária e participativa, é fundamental que esse acesso também seja crítico e reflexivo. A educação digital não deve se concentrar apenas em habilidades técnicas, mas também no desenvolvimento de uma compreensão crítica da tecnologia e de seus impactos sociais, éticos e políticos. Isso inclui ensinar como identificar e combater a desinformação, compreender as implicações da privacidade e da segurança on-line e refletir sobre o papel das grandes corporações de tecnologia em nossa vida cotidiana. Ao promover uma abordagem crítica, garantimos que os cidadãos não sejam meros consumidores passivos de tecnologia, mas agentes ativos que podem questionar, influenciar e moldar o desenvolvimento tecnológico de forma consciente e ética.
Uma abordagem crítica também envolve a conscientização sobre os preconceitos inerentes às tecnologias de inteligência artificial e a importância de uma representação justa nos dados usados para treinar esses sistemas. Por exemplo, as ferramentas de inteligência artificial que utilizam como fonte textos que consagram o preconceito racial ou a lógica sexista reproduzirão esses vieses como sabedoria convencional. Sem essa conscientização, há o risco de perpetuar as desigualdades existentes e criar novas formas de exclusão. Portanto, as políticas públicas e as iniciativas educacionais devem incluir debates sobre a ética na tecnologia, promovendo uma cultura de questionamento e responsabilidade. Ao capacitar as pessoas a pensar criticamente sobre a tecnologia, não apenas empoderamos os indivíduos, mas também fortalecemos a democracia, garantindo que a evolução digital seja inclusiva, justa e reflita criticamente sobre a sociedade.
Autor
Pós-graduada em Ciência Política (Unicamp) e analista de pesquisa da Market Analysis, consultoa de opinião pública com sede no Brasil.
Graduada em Ciências Sociais pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil) e analista de pesquisa da Market Analysis, consultora de opinião pública com sede no Brasil.