Assim que sua vitória foi confirmada, Donald Trump fez sua primeira aparição pública como o 47º presidente eleito dos Estados Unidos. O tema da imigração e a ampliação do Muro, pilares centrais de sua campanha vitoriosa, se fizeram presentes. “Vamos ter de fechar as fronteiras, queremos que as pessoas venham, mas têm de vir legalmente”, afirmou.
Nessas eleições presidenciais, a migração e o fechamento da fronteira foram decisivos para a escolha final. Existe um discurso predominante no país sobre a crise migratória, considerada a mais grave da história na fronteira sul. Cerca de 11 milhões de migrantes indocumentados vivem nos EUA, número estável desde 2005, segundo a BBC Brasil. Democratas foram acusados de deixar as fronteiras abertas e aqui repousaria a derrota. Mas será que Republicanos e Democratas foram divergentes ou apostaram em pontos distintos, porém, convergentes?
Ao contrário da campanha de Kamala Harris, o “Muro” ganhou maior protagonismo ao longo de toda a campanha de Trump. Para ele e seus mais de 72 milhões de eleitores (incluindo grande parcela de latinos do sexo masculino), a fronteira sul representa um dos maiores desafios para tornar a “America great again”. Mais do que nunca, durante esta corrida eleitoral, o Muro se tornou uma bandeira constante em sua retórica. O Muro não apenas equacionaria a migração descontrolada no país, mas poderia, ainda, endireitar a economia nacional. Afinal, para Trump, migração e economia andam lado a lado.
Ao longo dos 20 pontos apresentados em seu plano de governo, os temas da migração e economia se entrelaçam intimamente. Fica claro que a recuperação do emprego para os “Forgotten Men and Women of America” passa pela expulsão de migrantes indocumentados, responsáveis por sobrecarregar o mercado de trabalho e desvalorizar salários.
Republicanos reivindicam a missão de proteger a fronteira, deportar estrangeiros “ilegais” e reverter as políticas de “fronteiras abertas”, promovidas pelos democratas, que não apenas tiraram empregos, mas aumentaram o custo de moradia, educação e assistência médica para as famílias “americanas”.
Porém, não são todos os imigrantes que serão proibidos de pisar na “América”. Nas palavras do futuro vice-presidente, JD Vance, os republicanos planejam pinçar os mais aptos a atender postos de trabalhos específicos. Ao que tudo indica, o Muro os auxiliará nessa seleção.
A obsessão com o Muro
A obsessão com o Muro não começou com Trump. Ao contrário do que afirma, ele não o criou. O Muro, na prática, surgiu pouco depois de Donald Trump entrar na política. E, muito provavelmente, seguirá existindo depois que ele virar memória. Ele tornou-se uma fixação nacional, capaz, inclusive, de superar divergências entre governos republicanos e democratas. O Muro talvez tenha se tornado uma instituição do estado norte-americano.
Bush pai começou dividindo San Diego de Tijuana; Bill Clinton usou restos da Guerra do Vietnam para ampliar a fortificação; Bush filho contou com congressistas democratas como Obama e Hillary para reforçar o cercamento; Obama injetou US$ 600 milhões e adicionou mais 200 km; Trump, em seu primeiro mandato, construiu 130 km; e Biden teve o “cuidado” de fechar lacunas presentes no Muro.
Governos investem no Muro. Eles o ampliam e o recauchutam. Ele acalenta o coração de estadunidenses que veem o sonho americano ou seus animais de estimação sob a ameaça de seus vizinhos latinos. No entanto, é provável que também saibam que os reais problemas do país não estão na fronteira, mas em um contínuo declínio geopolítico, financeiro, econômico e social, aparentemente irreversível.
O valor simbólico
O Muro, contudo, oferece fôlego político e simbólico, quando presidentes se sentem encurralados. Quando a popularidade cai ou a crise da classe média acirra, é para lá que democratas e republicanos parecem buscar socorro. Dentre tantos bodes expiatórios, latino-americanos ganham protagonismo. Não é um Muro para lamentações, mas para soluções imediatas. Evocar o Muro é resgatar os ideais da Nação. E Trump sabe bem disso.
Assim como os outros presidentes, Trump também entende que o controle migratório não está confinado ao Muro ou depois dele. Ele envolve outras ações além de enfileirar altas colunas de aço. O reforço das fronteiras demanda avançar sobre as Américas, através de incisivos acordos bilaterais. Mas não só. Quando necessário, chantagens econômicas e decisões unilaterais também podem ser tomadas. Todo presidente dos EUA precisa de parceiros dispostos a fazer o trabalho sujo. Lembremos do lema de Biden, durante a Cúpula das Américas em 2022: “Nenhuma nação deve assumir essa responsabilidade sozinha”.
Em seu primeiro mandato, Trump soube utilizar desse recurso. Figuras políticas aparentemente antagônicas trabalharam ao seu lado. Esse, por exemplo, foi o caso dos então presidentes do México, López Obrador, e do Brasil, Bolsonaro, na contenção de venezuelanos e brasileiros, antes deles chegarem ao Muro.
Contudo, Trump entende que os holofotes repousam no Muro. Mais do que funcionar efetivamente, ele sabe que a política migratória precisa ser espetacularizada. Não basta apenas conter potenciais migrantes, antes mesmo deles pensarem em sair de casa. Isso não dá visibilidade. É preciso sentencia-los em público e o Muro permite isso.
Esse talvez tenha sido o “erro” de Kamala, nomeada por Biden para equacionar a crise migratória. Ao uberizar sua política migratória, democratas focaram excessivamente em seus “colaboradores” externos e deixaram o Muro para depois. A grande mídia e eleitores não perdoaram. Kamala visitou o México e o Triangulo Norte (El Salvador, Guatemala e Honduras), o local onde supostamente “as raízes” do problema migratório se encontram. Disse “não venham”, para os guatemaltecos.
Kamala seguiu avançando sobre as Américas e enviou delegações para diversos países. Equador e Colômbia fecharam acordos para receber de forma ordenada venezuelanos. Em julho deste ano, o Panamá se tornou um parceiro na deportação aérea de migrantes que arriscassem travessia rumo ao Norte. Mas essas ações parecem ter sido ignoradas por um público sedento por resultados imediatos, que só o Muro oferece.
Eis que quando chegou a hora de investir pesado na fronteira, onde o Muro está, o Senado, dominado por republicanos trumpistas, negou a lei que destinava US$ 118,2 bilhões para tal. Biden e Kamala não conseguiram concluir o projeto e isso soou como uma política divergente a de Trump.
Trump entende de reality show. Por anos, apontou o dedo para supostos fracassados e disse: “You are fired!” Sabia que isso tinha um grande apelo popular. Sobretudo de estadunidenses sentados sobre intermináveis pilhas de boletos a serem pagos, na tentativa de sustentar o ideal do “American way of life”. Já presidente, Trump compreendeu que o Muro deveria ser o seu grande palco. E ele não abriria mão disso para conquistar um novo mandato, mesmo sabendo que o Muro sozinho não resolve a crise. Nos próximos quatro anos, Trump e o Muro voltarão a ganhar os holofotes e aplausos de uma plateia enraivecida e amedrontada com o mundo de abundância que se foi.
Autor
Professor da Universidade Estadual de Montes Claros - UNIMONTES (Brasil). Doutor em Sociologia pela Goldsmiths University of London. Especialista em migração internacional de brasileiros e regimes fronteiriços.