No dia 6 de janeiro de 2025, o primeiro-ministro canadense Justin Trudeau anunciou sua renúncia ao cargo de líder do Partido Liberal – e, consequentemente, ao cargo de primeiro-ministro do Canadá. O ato foi o culminar de meses de dificuldades em seu governo de coalizão. Tais dificuldades envolveram o aumento exorbitante do custo de vida pós-Covid-19, em especial no preço dos aluguéis e dos imóveis à venda, e, principalmente, a percepção crescente da população de que a chegada de novos imigrantes temporários e permanentes, antes vista como uma solução para as questões territoriais, demográficas e econômicas do Canadá, tornara-se um problema para o país.
O Canadá depende da imigração para garantir a manutenção e o crescimento de sua população. Com uma taxa de natalidade de 1,33 filho por mulher – a taxa necessária para manutenção da população de um país é 2,1 filhos por mulher -, o país possui 40 milhões de habitantes, majoritariamente concentrados em uma estreita faixa ao longo do Rio São Lourenço e os Grandes Lagos. Em 2023, 97,3% do crescimento populacional do Canadá se deu devido à migração internacional.
Este fato tem impacto sobre o mercado de trabalho, em especial diante da carência crônica de determinados trabalhadores, como rurais, da construção civil e profissionais do cuidado. Neste caso, imigrantes oriundos majoritariamente de países do Sul global são atraídos ao país por meio de programas específicos de imigração temporária: mexicanos e jamaicanos, por exemplo, empreendem migrações sazonais para trabalhar nas lavouras canadenses sob os auspícios do Seasonal Agricultural Worker Program (SAWP). Além disso, as universidades do país dependem do grande influxo financeiro garantido pelos estudantes internacionais, que pagam taxas muito mais altas que cidadãos canadenses para estudar.
A despeito destes fatos, a permanência no país não é garantida após o vencimento dos vistos de residência temporária. Trabalhadores agrícolas costumam passar de 4 a 6 meses por ano no Canadá, mas muitos são enviados de volta a seus países de origem em caso de adoecimento ou acidentes de trabalho. Além disso, seus vistos temporários não permitem que suas famílias os acompanhem ao Canadá durante os meses de trabalho. No caso dos estudantes internacionais, o Post-Graduate Work Permit (PGWP) ou o Study Permit garantem a permanência durante o tempo que durarem os estudos – além de permitir que estudantes trabalhem jornadas de 20h semanais, muitas vezes em condições abusivas -, mas é preciso ter uma vaga de trabalho permanente e regular caso queiram continuar no país.
Assim, a imigração no Canadá foi, por muito tempo, uma unanimidade entre Conservadores, Liberais e Socialistas, como afirmou recentemente Pierre Poilievre, líder da oposição a Trudeau. Isso se deve em especial pelo fato de a imigração garantir divisas consideráveis e mão de obra barata ao setor privado, e aumento de arrecadação ao setor público. Justin Trudeau, durante seu governo, prometeu um aumento gradual, mas expressivo, de concessão de novas permissões de residência permanente e temporária. Este plano, ainda que desacelerado pela pandemia, cumpriu seu papel, levando à admissão de 471 mil residentes permanentes, e outros 804 mil migrantes temporários somente em 2023, um recorde histórico.
O apoio da população canadense a novas entradas de imigrantes no país, no entanto, deteriorou paulatinamente a partir da pandemia de Covid-19, respeitando um padrão de incitação ao sentimento anti-imigrantes por políticos de direita, e de acolhimento das demandas xenófobas e racistas pelo consenso liberal.
A escalada do custo de vida pós-pandemia intensificou a crise habitacional, em especial nos grandes centros urbanos como Toronto. Ainda que o cenário seja de pleno emprego, trabalhar não garante o mínimo necessário à vida. A culpa foi imputada aos imigrantes, supostamente mais numerosos que as habitações disponíveis, com foco especial nos estudantes internacionais, acusados de inflacionar aluguéis por serem ricos. Isso ignora o impacto que tem no fenômeno a concentração de imóveis nas mãos de poucas corporações.
Em setembro de 2024, o Canadá anunciou uma política migratória mais restritiva a partir de 2025, com redução de novos residentes permanentes de 485 mil para 395 mil e de residentes temporários de 2,96 milhões para 2,52 milhões. Universidades preveem demissões devido à redução no número de estudantes internacionais. O governo estima que 1,2 milhão de imigrantes temporários deixem o país ou se tornem indocumentados, configurando uma diáspora de proporções inéditas no Canadá.
Esse fenômeno também é influenciado pela complicada relação do Canadá com seu mais importante aliado, os Estados Unidos. A dinâmica migratória entre os dois países tem adquirido contornos dramáticos nos últimos anos, com estados como Nova York fretando ônibus para enviar imigrantes latino-americanos para a fronteira norte, além de famílias inteiras congelando até a morte na tentativa de entrar no Canadá. A pressão dos EUA sobre a política migratória canadense é significativa, e tornou-se especialmente ruidosa com a vitória de Donald Trump nas eleições americanas de 2024. Durante a corrida presidencial, pré-candidatos do Partido Republicano aventaram a possibilidade de construir um muro na fronteira norte dos EUA sob o argumento de que ela era especialmente permeável à entrada de “terroristas” a partir do Canadá. Além disso, Donald Trump prometeu, ainda em dezembro de 2024, um tarifaço de 25% sobre os produtos canadenses e mexicanos caso os países não lidem de forma adequada com a “imigração” e as “drogas”, precipitando a crise que levou à queda de Justin Trudeau.
Assim, é preciso apontar para duas questões. A primeira é que o Canadá, frequentemente considerado um oásis migratório, adotou, sob um governo liberal, uma política de produção forçada de indocumentação, já que é improvável que um êxodo da proporção do esperado ocorra de fato, e em tão pouco tempo. A maior parte dos imigrantes que perderão seus status ao longo de 2025 permanecerão no país. No entanto, irregulares, estarão sujeitos à exploração laboral, desassistidos pelo sistema de saúde e sem acesso à seguridade social.
Por fim, é preciso colocar em relevo como alguns fenômenos observados na América Latina há décadas, como a política de externalização das fronteiras dos Estados Unidos e a ingerência deste país sobre suas políticas migratórias, têm se espraiado para aliados que historicamente se consideraram enquanto simétricos. Atualmente, para entender o Canadá, é importante dirigir o olhar à América Latina.
Autor
Professor da Universidade de Brasília. Doutor e mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de São Carlos. Membro da Fundação Wenner-Gren e ex-membro da Plataforma de Ciências Sociais em Ação Humanitária da Universidade de Sussex. Fundador e membro da coordenação da Frente Nacional de Saúde do Migrante (FENAMI).