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A circulação de conhecimento, desenvolvimento tecnológico e inovação na América Latina está ameaçada

As restrições migratórias e as políticas educativas de Trump ameaçam frear a circulação global do conhecimento, afetando especialmente a América Latina e sua integração ao desenvolvimento científico internacional.

Nos últimos anos, muito tem se falado em “circulação de cérebros” ou “diáspora acadêmica”. É uma expressão utilizada no campo da Educação, principalmente, para se referir à movimentação de estudantes, pesquisadores, professores e profissionais altamente qualificados entre diferentes países, envolvendo um fluxo dinâmico e bidirecional de conhecimento, tecnologia e desenvolvimento humano e social.

Apesar de números modestos de investimento à pesquisa se comparados aos países mais ricos, pode-se dizer que a América Latina, de modo geral, e o Brasil, de modo mais específico, têm certa tradição no incentivo e no reconhecimento da movimentação temporária ou recorrente transnacional de especialistas e pesquisadores. Para se ter uma ideia, na última década (entre 2012 e 2022), no Brasil, 64 mil estudantes, professores e  cientistas e receberam recursos da Capes ou do CNPq – as agências de fomento à pesquisa do governo federal ligadas ao ministérios da Educação e da Ciência e Tecnologia, respectivamente – para se aperfeiçoarem e desenvolverem pesquisas no exterior, em nível da pós-graduação, nas modalidades: Aprimoramento ou Capacitação, Cátedra, Doutorado Sanduíche, Doutorado Pleno (ou Doutorado no Exterior), Estágio Sênior, Mestrado Sanduíche, Mestrado Profissional, Pós-Doutorado (ou Estágio Pós-Doutoral), e Professor / Pesquisador Visitante.

Mais de 80% dessas pessoas, nesse período, foram para países do Norte Global, como Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Alemanha, França, Portugal, Espanha, Itália e Holanda. Assim, com pesquisadores do mundo todo, compõem um sistema acadêmico consolidado, integrado e globalizado, formado por universidades, centros e institutos de pesquisas, organismos de fomento à pesquisa, redes científicas, entre outros atores, que moldam fluxos de circulação de pessoas ao redor da produção do conhecimento e do desenvolvimento científico e tecnológico, em todas as áreas do conhecimento.

Eis que em 2025, e poucos anos após o mundo viver a pandemia de Covid-19 – quando nunca se precisou tanto de novos conhecimentos, pesquisas e descobertas científicas –, esse sistema está em risco, com ações que não teriam tantos efeitos se não estivéssemos falando do país que possui a maior parte dos melhores centros universitários do planeta e que recebe a maioria dos estudantes do mundo, inclusive da América Latina e do Brasil: os Estados Unidos.

Seja no campo do discurso, da gestão política (assinatura de decretos e outras ações), ou mesmo do orçamento, com corte de verbas, o atual presidente Donald Trump tem acusado as universidades do país de antissemitismo e racismo. Ficou conhecido em todo o mundo o recente caso da Universidade de Harvard, que precisou recorrer à Justiça para suspender a proibição de seguir com seu reconhecido Programa de Intercâmbio de Estudantes e Visitantes, responsável pela presença atual de cerca de 7 mil estudantes estrangeiros em seus campi. Medidas semelhantes e protestos também têm sido registrados em outros centros universitários, como Cambridge e Massachusetts.

Soma-se a essas ações, outros dois casos emblemáticos. O primeiro, ocorrido em fevereiro de 2025, foram as denúncias de censura, até mesmo por parte de pesquisadores e professores brasileiros, envolvendo o Fulbright Specialist Program, um programa do Departamento de Estado americano, que conecta especialistas a instituições de ensino ao redor do mundo para colaborações de curto prazo. Segundo divulgado na época, deveriam ser evitados nas pesquisas financiadas pelo projeto, expressões como opressões de gênero, classe e raça, crise dos princípios democráticos, emancipação social, sistemas de opressão e justiça social. 

O segundo, ocorrido agora, entre maio e junho de 2025, foi a determinação da suspensão, já revogada, de agendamentos para vistos de novos estudantes estrangeiros que pretendem estudar nos EUA (modalidades F, M e J) e a obrigatoriedade de verificar as redes sociais digitais dos candidatos para tentar identificar pessoas que possam ser hostis ao país, esta ainda em vigor.

Evidentemente que as ações do governo Trump não são exclusivas contra a “circulação de cérebros” ou a “diáspora acadêmica” e precisam ser compreendidas dentro de um contexto macro, envolvendo a política anti-migratória atrelada a posições econômicas, políticas e ideológicas, claramente divulgadas durante o período da campanha que o elegeu. No entanto, cabe questionar até que ponto elas limitam a transferência e circulação de conhecimento e tecnologias, expansão de mercados, oportunidades de aperfeiçoamento profissional e pessoal, e, principalmente, impactos reais no desenvolvimento sustentável do planeta – temas tão caros ao Brasil e à América Latina.

É sabido dos desafios estruturais de ordem histórica enfrentados pelo continente latino-americano, como desigualdades sociais e regionais, baixa produtividade econômica, instabilidades políticas, violência e choques climáticos. São questões intrínsecas à característica emigratória de seus países, seja envolvendo pesquisadores, cientistas e estudantes, seja envolvendo a população em geral. Classificação de 2015 do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) coloca o Brasil em quinto lugar com maior número de pessoas que emigram internacionalmente, atrás apenas do México, da região triangular norte da América Central (Guatemala, Honduras e El Salvador), Colômbia e Porto Rico. 

A “diáspora acadêmica”, por sua vez, é o processo migratório mais regular, ordenado e seguro existente, não só por conta do alto nível educacional de seus integrantes, mas, de todo o planejamento, sistema jurídico e rede de apoio transnacional que o envolve. Colocar esse sistema em xeque, muito mais que interferir nas formas de resiliência, potencialidade e desenvolvimento de inovação tecnológica e pesquisa, impacta na integração cada vez maior do continente à economia global, ao progresso e à paz.

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Doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ e docente pesquisadora da Univ. Metodista de São Paulo, no programa de pós-graduação em Comunicação. Coordenadora da plataforma de dados Brasileiros no exterior: https://www.brasileirosnoexterior.org

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